quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

"E então ninguém perguntará quem semeou o que se colhe"



Talvez o que vá dizer não venha ao caso do que seja tema central desta mesa. Talvez sim.
Há dois dias, a mesma que em nossa fala se referiu à violência, a inefável Condoleezza Rice, funcionária do governo norte-americano, declarou que o que está acontecendo em Gaza era culpa dos palestinos por sua natureza violenta.
Os rios subterrâneos que percorrem o mundo podem mudar o percurso, mas entoam o mesmo canto.
E o que escutamos agora é um canto de guerra e pena.
Não muito longe daqui, num lugar chamado Gaza, na Palestina, no Oriente Médio, aqui do lado, um exército fortemente armado e treinado, do governo de Israel, continua a avançar, levando morte e destruição.
Os passos seguidos até agora são de uma guerra militar clássica de conquista: primeiro um bombardeio intenso e massivo para destruir pontos militares "nevrálgicos" (como dizem os manuais militares) e "suavizar" as fortificações da resistência; depois, um ferrenho controle sobre a informação: tudo que se escutar e ver "no mundo exterior", isto é, para fora do teatro de operações, deve ser selecionado com critérios militares; agora, fogo intenso de artilharia sobre a infantaria inimiga para proteger o avanço de suas tropas para novos territórios; depois será o cerco e estado de sítio para debilitar a guarnição inimiga e depois o assalto para a conquista da posição, aniquilando o inimigo, e então a limpeza dos prováveis "ninhos de resistência".
O manual militar de guerra moderna, com algumas variações e acréscimos, está sendo seguido passo-a-passo pelas forças militares invasoras.
Nós não sabemos muito sobre isto e, é certo, há especialistas sobre o chamado "conflito no Oriente Médio", mas deste canto do mundo temos algo a dizer:
Segundo as fotos das agências de notícias, os pontos "nevrálgicos" destruídos pela aviação do governo de Israel são casas de moradia, casebres, edifícios civis. Não vimos nas fotos nenhum bunker, nem quartel, ou aeroporto militar, nem bateria de canhões, entre o que está destruído. Então, nos desculpem, desculpem nossa ignorância, mas pensamos que, ou os soldados de artilharia dos aviões têm má pontaria, ou em Gaza não existem os tais pontos militares "nevrálgicos".
Não tivemos a honra de conhecer a Palestina, mas supomos que nessas casas, barracos e edifícios eram habitados por gente – homens, mulheres, crianças e idosos, e não soldados.
Tampouco vimos fortificações de resistência, só se vêem escombros.
Vimos, sim, o até agora vão esforço do cerco informativo e os diversos governos pelo mundo no dilema de fingir estar alheio ou cinicamente aplaudir a invasão, e uma ONU, já inútil (aliás, há algum tempo), emitindo mornas notas para a imprensa.
Mas, esperem. Ocorreu-nos que talvez, para o governo de Israel, esses homens, mulheres, crianças e idosos são soldados inimigos, e como tais, os casebres, casas e edifícios que habitam são quartéis que precisam ser destruídos.
Então, com certeza, os fogos de artilharia que esta madrugada que caíam sobre Gaza eram pra proteger desses homens, mulheres, crianças e idosos o avanço da infantaria do exército de Israel.
E a guarnição inimiga que querem debilitar com o cerco e sítio que está se expandindo no entorno de Gaza na é outra coisa que a população palestina que ali vive. E que o assalto pretende aniquilar essa população. E que qualquer homem, mulher, menino ou idoso que conseguir escapar, escondendo-se do assalto, previsivelmente sangrento, logo será "caçado" para que a limpeza se complete e o comando militar responsável pela operação possa se reportar a seus superiores: "concluímos nossa missão."

Desculpem novamente a nossa ignorância, talvez o que estamos dizendo não venha, de fato, ao caso, ou coisa, segundo a lógica hegemônica. E que em vez de estarmos repudiando e condenando o crime em marcha, como indígenas e como guerreiros que somos, deveríamos estar discutindo e tomando posição na discussão sobre "sionismo" ou "anti-semitismo", ou que no começo foram as bombas do Hamás.
Talvez nosso pensamento seja muito simples e nos faltem matizes e gradientes tão necessários sempre nas análises, mas para nós, zapatistas, em Gaza há um exército profissional assassinando uma população indefesa.
Quem é oprimido e à esquerda pode permanecer calado?
Vale a pena dizer algo? Detêm alguma bomba nossos gritos? Nossa palavra salva a vida de alguma criança palestina?
Nós pensamos que, sim, serve, e que talvez não detenhamos uma bomba nem nossa palavra se converta em escudo blindado que evite essa bala calibre 5,56 mm ou 9 mm, com as inscrições IMI (Indústria Militar Israelense), gravadas na base do cartucho, chegue ao peito de uma menina ou de um menino, porque talvez nossa palavra consiga unir-se a outras no México e pelo mundo afora, e talvez primeiro seja um murmúrio, logo em voz alta e depois em um grito que escutem em Gaza.
Não sabemos vocês, mas nós, zapatistas (do Exército Zapatista de Libertação Nacional), sabemos a importância que tem, em meio à destruição e à morte, escutar umas palavras de apoio.
Não sei como explicá-lo, mas acontece que, sim, as palavras desde longe talvez não alcancem a deter uma bomba, mas são como se se abrisse uma vala na funesta cova da morte e uma luzinha se acendera.
Pelo restante, passará o que por si vai acontecer. O governo de Israel declarará que deu um duro golpe ao terrorismo, esconderá à sua população a real magnitude do massacre, as poderosas indústrias de armas terão obtido um fôlego econômico para afrontar a crise e a "opinião pública mundial", esse ente maleável e sempre acomodado, voltará seu foco para outro lado.
Mas não apenas isso. Também acontecerá que o povo palestino vai resistir e sobreviver e prosseguir lutando, e continuar contando com a simpatia e o apoio dos oprimidos para sua causa.
E talvez um menino ou uma menina de Gaza sobreviva também. Talvez cresça e, com ele ou ela, a coragem, a indignação, a raiva. Talvez se façam soldados ou milicianos de algum dos grupos que lutam na Palestina. Talvez combata Israel. Talvez o faça atirando uma bala de fuzil. Talvez se imolando com uma faixa de dinamite em sua cintura.
Então, lá, no alto do hemisfério norte, escreverão sobre a natureza violenta dos palestinos e farão declarações condenando essa violência e voltará a se discutir se sionismo ou anti-semitismo.
E então ninguém perguntará quem semeou o que se colhe.
Pelos homens, mulheres, meninos e idosos do Exército Zapatista de Libertação Nacional,
Subcomandante Insurgente Marcos

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