Michael Hudson [*] 08/Fevereiro/2022
A Cortina de
Ferro das décadas de 1940 e 1950 era ostensivamente concebida para isolar a
Rússia da Europa Ocidental – para afastar a entrada da ideologia comunista e da
penetração militar. O regime de sanções de hoje é voltado para dentro, para
impedir que a NATO dos EUA e outros aliados ocidentais abram mais o comércio e
investimentos com a Rússia e a China. O objetivo não é tanto
isolar a Rússia e a China, mas sim manter esses aliados firmemente dentro da
própria órbita económica dos EUA. Os aliados devem privar-se dos benefícios da
importação de gás russo e dos produtos chineses, comprando GNL dos EUA a preços
muito mais elevados e outras exportações, culminando por mais armas dos EUA.
As sanções
que os diplomatas dos EUA insistem que seus aliados imponham contra o comércio
com a Rússia e a China visam ostensivamente impedir uma escalada militar. Mas
uma tal escalada não pode realmente ser a principal preocupação russa e
chinesa. Eles têm muito mais a ganhar oferecendo benefícios económicos mútuos
ao Ocidente. Assim, a questão subjacente é se a Europa descobrirá a sua
vantagem em substituir as exportações dos EUA por fornecimentos russos e
chineses e as ligações económicas mútuas associadas.
O que
preocupa os diplomatas americanos é que a Alemanha, outras nações da NATO e
países ao longo da rota Belt and Road entendam os ganhos que
podem ser obtidos com a abertura de comércio e investimentos pacíficos. Se não
há planos russos ou chineses para invadi-los ou bombardeá-los, qual é a
necessidade da NATO? Qual é a necessidade de compras tão pesadas de
equipamentos militares dos EUA pelos aliados ricos dos EUA? E se não existe uma
relação inerentemente adversa, por que países estrangeiros precisam sacrificar
seus próprios interesses comerciais e financeiros confiando exclusivamente nos
exportadores e investidores dos EUA?
Estas são as
preocupações que levaram o primeiro-ministro francês Macron a invocar o
fantasma de Charles de Gaulle e instar a Europa a se afastar do que ele chama
de “morte cerebral” da Guerra Fria da NATO e romper com acordos comerciais
favoráveis aos EUA que estão impondo custos crescentes à Europa, negando-lhe
ganhos potenciais do comércio com a Eurásia. Até a Alemanha está a recusar-se a
exigências de que ficar congelada até Março próximo, ficando sem o gás russo.
Ao invés de
uma ameaça militar real da Rússia e da China, o problema para os estrategas
americanos é a ausência de tal ameaça. Todos os países
perceberam que o mundo chegou a um ponto em que nenhuma economia industrial tem
mão-de-obra e capacidade política para mobilizar um exército permanente da
dimensão que seria necessária para invadir ou mesmo travar uma grande batalha
com um adversário significativo. Esse custo político torna não econômico para a
Rússia retaliar contra o aventureirismo da OTAN a espicaçar a sua fronteira
ocidental tentando incitar uma resposta militar. Não vale a pena tomar a
Ucrânia.
A pressão
crescente dos EUA sobre seus aliados ameaça expulsá-los da órbita
estado-unidense. Durante mais de 75 anos, eles tiveram pouca alternativa
prática à hegemonia dos EUA. Mas isso agora está a mudar. Os Estados Unidos não
têm mais o poder monetário e o excedente aparentemente crônico das balanças
comercial e de pagamentos que em 1944-45 lhe permitiram elaborar as regras
mundiais de comércio e investimento. A ameaça à dominância dos EUA é que a
China, a Rússia e o cerne da Ilha Mundial Eurasiana de Mackinder estão a
oferecer melhores oportunidades de comércio e investimento do que as
disponíveis nos Estados Unidos com sua exigência cada vez mais desesperada de
sacrifícios da sua OTAN e de outros aliados.
O exemplo
mais gritante é a tentativa dos EUA de impedir a Alemanha de autorizar o
gasoduto Nord Stream 2 a fim de obter gás russo para o tempo frio que se
aproxima. Angela Merkel concordou com Donald Trump em gastar US$1000 milhões na
construção de um novo terminal metaneiro para se tornar mais dependente do GNL
dos EUA, de alto preço. (O plano foi cancelado depois de as eleições americanas
e alemãs mudarem ambos os líderes.) Mas a Alemanha não tem outro meio de
aquecer muitas de suas casas e prédios de escritórios (ou abastecer suas
empresas de fertilizantes) senão o gás russo.
A única
maneira que resta para os diplomatas dos EUA bloquearem as compras europeias é
incitar a Rússia a uma resposta militar e depois alegar que vingar tal resposta
supera qualquer interesse econômico puramente nacional. Como a falcoa Victoria
Nuland, subsecretária de Estado para Assuntos Políticos, explicou numa coletiva
de imprensa do Departamento de Estado em 27 de janeiro: “Se a Rússia invadir a
Ucrânia de uma forma ou de outra, o Nord Stream 2 não avançará”. [1] O problema é criar um incidente
adequadamente ofensivo e retratar a Rússia como o agressor.
Nuland
mostrou sucintamente quem ditava as políticas dos membros da OTAN em 2014:
“Foda-se a UE”. Isso foi dito quando ela informou ao embaixador dos EUA na
Ucrânia que o Departamento de Estado estava a apoiar o fantoche Arseniy
Yatsenyuk como primeiro-ministro ucraniano (removido após dois anos em um
escândalo de corrupção) e as agências políticas dos EUA apoiaram o sangrento
massacre de Maidan que deu iniciou a oito anos de guerra civil. O resultado
devastou a Ucrânia tanto quanto a violência dos EUA na Síria, Iraque e
Afeganistão. Isto não é a política de paz mundial ou democracia que os
eleitores europeus endossam.
As sanções
comerciais dos EUA impostas a seus aliados da OTAN estendem-se por todo o
espectro comercial. A Lituânia, dominada pela austeridade, abriu mão do seu
mercado de queijos e agricultura na Rússia e está a impedir a sua ferrovia
estatal de transportar potássio da Bielorrússia para o porto báltico de
Klaipeda. O principal proprietário do porto queixou-se de que “a Lituânia
perderá centenas de milhões de dólares ao interromper as exportações da
Bielorrússia através de Klaipeda” e de que “pode enfrentar reivindicações
legais de US$15 mil milhões por rupturas de contratos”. [2] A Lituânia até concordou com a
solicitação dos EUA para reconhecer Formosa, o que resultou na recusa da China
a importar produtos alemães ou outros que incluam componentes fabricados na
Lituânia.
A Europa
deve impor sanções à custa do aumento dos preços da energia e da agricultura,
dando prioridade às importações dos Estados Unidos e renunciando às ligações
russas, bielorrussas e outras fora da área do dólar. Como Sergey Lavrov colocou
a questão: “Quando os Estados Unidos pensam que algo atende aos seus
interesses, podem trair aqueles de quem eram amigos, com quem cooperaram e que
atenderam às suas posições em todo o mundo”. [3]
As sanções dos EUA aos seus
aliados prejudicam suas economias, não as da Rússia e da China
O que parece
irônico é que tais sanções contra a Rússia e a China acabaram por ajudá-los ao
invés de prejudicá-los. Mas o objetivo principal era prejudicar, não ajudar as
economias russa e chinesa. Afinal, é axiomático que sanções forçam os países
visados a se tornarem mais auto-suficientes. Privados do queijo lituano, os
produtores russos produziram o seu próprio queijo e não precisam mais
importá-lo dos estados bálticos. A rivalidade econômica subjacente dos Estados
Unidos visa manter os países europeus e asiáticos aliados na sua própria órbita
econômica cada vez mais protegida. Alemanha, Lituânia e outros aliados são
instruídos a impor sanções destinadas a atingir o seu próprio bem-estar econômico
ao não negociar com países fora da órbita da área do dólar americano.
Independentemente
da ameaça de guerra real resultante da belicosidade estado-unidense, o custo
para os aliados dos EUA de se renderem às suas exigências de comércio e
investimento está a tornar-se tão alto que acaba por ser politicamente
insustentável. Durante quase um século, houve pouca alternativa a não ser
concordar com regras de comércio e investimento que favorecessem a economia dos
EUA como preço pelo apoio financeiro e comercial dos EUA e mesmo por segurança
militar. Mas agora ameaça surgir uma alternativa – aquela que oferece
benefícios da iniciativa BRI da China, a Estrada da Seda, e do desejo da Rússia
de investimentos estrangeiros para ajudar a modernizar sua organização
industrial, como parecia ter sido prometido em 1991, há trinta anos.
Desde os
fins da Segunda Guerra Mundial, a diplomacia dos EUA tem como objetivo prender
a Grã-Bretanha, a França e especialmente a Alemanha e o Japão derrotados,
tornando-os dependências econômicas e militares. Como documentei em Super Imperialism,
diplomatas americanos desmembraram o Império Britânico e absorveram a sua Área
do Esterlino com os termos onerosos impostos primeiro pelo Lend-Lease e a
seguir pelo Anglo-American Loan Agreement de 1946. Os termos deste último
obrigaram a Grã-Bretanha a abandonar a sua política de Preferência Imperial e a
desbloquear os saldos em libras esterlinas que a Índia e outras colônias haviam
acumulado com as suas exportações de matérias-primas durante a guerra, abrindo
assim a Commonwealth britânica às exportações dos EUA.
A
Grã-Bretanha comprometeu-se a não recuperar seus mercados anteriores à guerra
através da desvalorização da libra. Diplomatas americanos criaram então o FMI e
o Banco Mundial em termos que promoviam os mercados de exportação dos EUA e
afastaram a concorrência da Grã-Bretanha e de outros antigos rivais. Debates na
Câmara dos Lordes e na Câmara dos Comuns mostraram que os políticos britânicos
reconheciam estarem a ser relegados a uma posição econômica subserviente, mas
sentiam não terem alternativa. E uma vez que desistiram, os diplomatas dos EUA
tiveram liberdade para confrontar o resto da Europa.
O poder
financeiro permitiu que os Estados Unidos continuassem a dominar a diplomacia
ocidental, apesar de serem forçados a abandonar o ouro em 1971 devido aos
custos na balança de pagamentos dos seus gastos militares no exterior. Durante
o último meio século, países estrangeiros mantiveram suas reservas monetárias
internacionais em dólares americanos – principalmente em US Treasury
securities, contas em bancos americanos e outros investimentos financeiros na
economia dos EUA. O padrão letras do Tesouro obriga os bancos centrais
estrangeiros a financiarem o défice de base militar na balança de pagamentos
dos Estados Unidos – e, neste processo, o défice orçamental interno do governo.
Os Estados
Unidos não precisam desta reciclagem para gerar moeda. O governo pode
simplesmente imprimir a moeda, como demonstrou a Moderna Teoria Monetária
(MMT). Mas os Estados Unidos precisam desta reciclagem dos dólares dos bancos
centrais estrangeiros para equilibrar seus pagamentos internacionais e
sustentar a taxa de câmbio do dólar. Se o dólar declinasse, países estrangeiros
achariam muito mais fácil pagar dívidas internacionais em dólar nas suas
próprias divisas. Os preços de importação dos EUA aumentariam e seria mais caro
para investidores americanos comprarem ativos estrangeiros. E os estrangeiros
perderiam dinheiro com ações e títulos dos EUA denominados nas suas próprias
divisas e os abandonariam. Os bancos centrais, em particular, teriam uma perda
com os títulos em dólar do Tesouro mantidos nas suas reservas monetárias – e
descobririam que seu interesse está em fugir do dólar. Assim, tanto a balança
de pagamentos dos EUA como a sua taxa de câmbio estão ameaçados pela
beligerância e os gastos militares estado-unidenses por todo o mundo – ainda
que os seus diplomatas tentem estabilizar as coisas através do aumento de
ameaças militares até ao nível de crises.
Os esforços
dos EUA para manter seus protetorados europeus e do leste asiático trancados na
sua própria esfera de influência são ameaçados pela emergência da China e da
Rússia independentes dos Estados Unidos, enquanto a economia dos EUA está a
desindustrializar-se como resultado das suas próprias escolhas políticas
deliberadas. A dinâmica industrial que tornou os Estados Unidos tão dominantes
desde o final do século XIX até a década de 1970 deu lugar a uma missionária
financiarização neoliberal. É por isso que os diplomatas dos EUA precisam
torcer o braço dos seus aliados a fim de bloquear as suas relações econômicas
com a Rússia pós-soviética e a China socialista, cujo crescimento supera o dos
Estados Unidos e cujos acordos comerciais oferecem mais oportunidades de ganho
mútuo.
A questão é
quanto tempo os Estados Unidos podem impedir seus aliados de aproveitarem o
crescimento econômico da China. Será que a Alemanha, a França e outros países
da OTAN buscarão a prosperidade para si próprios ao invés de deixar que o
padrão do dólar americano e as preferências comerciais suguem o seu superávit
econômico?
A diplomacia do petróleo e o sonho dos Estados Unidos para a Rússia
pós-soviética
A
expectativa de Gorbachev e outros responsáveis russos em 1991 era que sua
economia se voltasse para o Ocidente para uma reorganização nos moldes que
tornaram tão prósperas as economias dos EUA, Alemanha e outras. A expectativa
mútua na Rússia e na Europa Ocidental era que investidores alemães, franceses e
outros reestruturassem a economia pós-soviética em linhas mais eficientes.
Esse não era
o plano dos EUA. Quando o senador John McCain chamou a Rússia de “um posto de
gasolina com bombas atómicas”, esse era o sonho dos Estados Unidos do que eles
queriam que fosse a Rússia – com as empresas de gás russas a passarem para o
controle de acionistas americanos, a começar com a planejada compra da Yukos,
conforme combinado com Mikhail Khordokovsky. A última coisa que os estrategas
dos EUA queriam ver era o renascimento de uma Rússia próspera. Os conselheiros
dos EUA procuraram privatizar os recursos naturais da Rússia e outros ativos
não industriais, entregando-os a cleptocratas que poderiam “sacar” o valor do
que haviam privatizado apenas vendendo aos EUA e outros investidores
estrangeiros por divisas fortes. O resultado foi um colapso econômico e
demográfico neoliberal em todos os estados pós-soviéticos.
De certa
forma, os Estados Unidos vêm se transformando na sua própria versão de um posto
de gasolina com bombas atómicas (e exportações de armas). A diplomacia do
petróleo dos EUA visa controlar o comércio mundial do óleo para que os seus
enormes lucros sejam acumulados para as principais empresas dos EUA. Foi para
manter o petróleo iraniano nas mãos da British Petroleum que em 1954 Kermit
Roosevelt da CIA trabalhou com a Anglo-Persian Oil Company, da British
Petroleum, para derrubar o líder eleito do Irão, Mohammed Mossadegh, quando
procurou nacionalizar a empresa depois de ela se ter recusado, década após
década, a cumprir as contribuições que prometera para a economia. Depois de
instalar o Xá cuja democracia era baseada num estado policial cruel, o Irão
ameaçou mais uma vez atuar como o dono de seus próprios recursos petrolíferos.
Por isso, foi mais uma vez confrontado com sanções patrocinadas pelos EUA, que
permanecem em vigor até hoje. O objetivo de tais sanções é manter o comércio
mundial do petróleo firmemente sob o controle estado-unidense, porque o
petróleo é energia e energia é a chave para produtividade e o PIB real.
Nos casos em
que governos estrangeiros como a Arábia Saudita e petro-estados árabes vizinhos
assumem o controle, as receitas de exportação de seu petróleo devem ser
depositadas nos mercados financeiros dos EUA a fim de apoiar a taxa de câmbio
do dólar e a dominação financeira dos EUA. Quando eles quadruplicaram os preços
do petróleo em 1973-74 (em resposta à quadruplicação dos preços de exportação
de cereais pelos EUA), o Departamento de Estado dos EUA estabeleceu a lei e
disse à Arábia Saudita que poderia cobrar o quanto quisesse pelo seu petróleo
(aumentando assim o guarda-chuva de preços para os produtores de petróleo dos
EUA), mas tinha de reciclar suas receitas com a exportação de petróleo para os
Estados Unidos em títulos denominados em dólares – principalmente em títulos do
Tesouro e contas bancárias dos EUA, juntamente com algumas participações
minoritárias em ações e títulos (mas apenas como investidores passivos, sem
utilizar este poder financeiro para controlar políticas corporativas).
O segundo
modo de reciclar os ganhos da exportação de petróleo era comprar as exportações
de armas dos EUA, com a Arábia Saudita tornando-se um dos maiores clientes do
complexo industrial-militar. A produção de armas dos EUA, na verdade, não é
primariamente de caráter militar. Como o mundo está a ver agora na comoção
sobre a Ucrânia, a América não tem um exército de combate. O
que tem é o que costumava ser chamado de “exército da comilança” (“eating
army”). A produção de armas dos EUA emprega mão-de-obra e produz
armamento como uma espécie de instrumento de prestígio para governos exibirem,
não para combates reais. Como a maior parte dos produtos de luxo, a
margem (markup) é muito alta. Essa é a essência da alta moda e
estilo, afinal de contas. O complexo militar-industrial usa seus lucros para
subsidiar a produção civil dos EUA de um modo que não viole a letra das leis de
comércio internacional contra subsídios governamentais.
Por vezes, é
claro, a força militar é de facto usada. No Iraque, primeiro George W. Bush e
depois Barack Obama usaram os militares para tomar as reservas de petróleo do
país, juntamente com as da Síria e da Líbia. O controle do petróleo mundial tem
sido o alicerce da balança de pagamentos dos Estados Unidos. Apesar do esforço
global para retardar o aquecimento do planeta, as autoridades americanas
continuam a encarar o petróleo como a chave para a supremacia econômica dos
Estados Unidos. É por isso que os militares dos EUA ainda se recusam a
obedecer às ordens do Iraque para deixar seu país, mantendo suas tropas no
controle do petróleo iraquiano, e por isso concordou com os franceses em destruir
a Líbia e ainda tem tropas nos campos petrolíferos da Síria. Mais
perto de casa, o presidente Biden aprovou a perfuração offshore e
apóia a exploração das areias betuminosas de Athabasca (Canadá), ambientalmente
o petróleo mais sujo do mundo.
Juntamente
com as exportações de petróleo e alimentos, as exportações de armas apoiam o
financiamento do padrão de financiamento das despesas militares dos EUA nas
suas 750 bases no estrangeiro por meio de títulos do Tesouro. Mas sem um
inimigo permanente a ameaçar constantemente nos portões, a existência da OTAN
desmorona. Qual seria a necessidade dos países comprarem submarinos,
porta-aviões, aviões, tanques, mísseis e outras armas?
À medida que
os Estados Unidos se desindustrializaram, seu défice comercial e de balança de
pagamentos tornou-se mais problemático. O país precisa das vendas de exportação
de armas para ajudar a reduzir seu crescente défice comercial e também para
subsidiar suas aeronaves comerciais e sectores civis relacionados. O desafio é
como manter sua prosperidade e dominação mundial à medida que se desindustrializa
enquanto o crescimento econômico avança na China e agora até na Rússia.
A América
perdeu a sua vantagem de custo industrial pelo aumento drástico do seu custo de
vida e de fazer negócios na sua economia financiarizada pós industrial rentista. Além
disso, como Seymour Melman explicou na década de 1970, o capitalismo do
Pentágono é baseado em contratos por administração (cost-plus
contracts): Quanto mais altos os custos do hardware militar, mais
lucros seus fabricantes recebem. Assim, as armas dos EUA são demasiado
complexas – daí os assentos sanitários de US$500 ao invés de um modelo de
US$50. Afinal, a principal atratividade dos bens de luxo, incluindo
equipamentos militares, é seu preço elevado.
Este é o
pano de fundo para a fúria dos EUA no seu fracasso em aproveitar os recursos
petrolíferos da Rússia – e ao ver a Rússia também se libertar militarmente para
criar suas próprias exportações de armas, as quais agora são tipicamente
melhores e muito menos custosas do que aquelas dos EUA. Hoje a Rússia está na
posição do Irão em 1954 e novamente em 1979. Não só as suas vendas de petróleo
rivalizam com as do GNL dos EUA, como a Rússia mantém seus ganhos de exportação
de petróleo em casa a fim de financiar a sua reindustrialização, de modo a
reconstruir a economia que fora destruída pela “terapia” de choque patrocinada
pelos EUA na década de 1990.
A linha de
menor resistência para a estratégia dos EUA que busca manter o controle do
fornecimento mundial de petróleo enquanto mantém seu mercado de exportação de
armas de luxo via OTAN é Gritar Lobo e insistir em que a
Rússia está prestes a invadir a Ucrânia – como se a Rússia tivesse algo a
ganhar com a guerra no atoleiro da economia mais pobre e menos produtiva da
Europa. O Inverno de 2021-22 viu uma longa tentativa de instigação dos EUA à
OTAN e à Rússia para combaterem – sem êxito.
Os EUA sonham com uma China
neoliberalizada como filiada corporativa dos EUA
Os Estados
Unidos se desindustrializaram como uma política deliberada de cortar custos de
produção, uma vez que as suas empresas de manufatura buscaram mão-de-obra de
baixos salários no exterior, sobretudo na China. Essa mudança não foi uma
rivalidade com a China, mas era encarada como um ganho mútuo. Esperava-se que
bancos e investidores americanos assegurassem o controle e os lucros da
indústria chinesa à medida que ela fosse comercializada. A rivalidade era
entre o patronato dos EUA e os trabalhadores dos EUA, e a arma da guerra de
classes era a deslocalização (offshoring) e, no processo,
cortar gastos sociais do governo.
Semelhante à
busca russa por petróleo, armas e comércio agrícola independente do controle
dos EUA, a ofensa da China é manter os lucros de sua industrialização em casa,
retendo a propriedade estatal de corporações significativas e, acima de tudo,
mantendo a criação de moeda e o Banco da China como um serviço público para
financiar a sua própria formação de capital ao invés de permitir que bancos e
corretoras norte-americanas forneçam seu financiamento e extraiam seu excedente
na forma de juros, dividendos e taxas de administração. A única graça salvadora
para os planejadores corporativos dos EUA foi o papel da China em impedir o
aumento dos salários dos EUA, providenciando uma fonte de mão-de-obra barata
para permitir que fabricantes americanos se deslocalizassem e terciarizassem
a sua produção.
A guerra de
classe do Partido Democrata contra o trabalho sindicalizado começou no governo
Carter e acelerou muito quando Bill Clinton abriu a fronteira sul com o NAFTA.
Uma série de maquilhadoras foi estabelecida ao longo da fronteira para
fornecer mão-de-obra de baixo custo. Isso se tornou um centro de lucro corporativo
tão bem-sucedido que em dezembro de 2001 Clinton pressionou para admitir a
China na Organização Mundial do Comércio, no último mês do seu governo. O sonho
era que se tornasse um centro de lucro para investidores americanos, produzindo
para empresas americanas e financiando seu investimento de capital (e habitação
e gastos governamentais também, esperava-se) tomando dólares emprestados e
organizando sua indústria num mercado de ações que, como o da Rússia em
1994-96, tornar-se-ia um fornecedor líder de ganhos de capital financeiro para
os EUA e outros investidores estrangeiros.
A Walmart,
Apple e muitas outras empresas norte-americanas organizaram instalações de
produção na China, o que necessariamente envolveu transferências de tecnologia
e a criação de uma infraestrutura eficiente para o comércio de exportação. A
Goldman Sachs liderou a incursão financeira e ajudou o mercado de ações da
China a subir. Tudo o que a América estivera a insistir.
Onde o sonho neoliberal da Guerra Fria da América deu errado?
Para
começar, a China não seguiu a política do Banco Mundial de orientar os governos
a tomar empréstimos em dólares a fim de contratar empresas de engenharia dos
EUA para fornecer infraestrutura de exportação. Ela industrializou-se da mesma
forma que os Estados Unidos e a Alemanha o fizeram no final do século XIX: Por
meio de pesados investimentos públicos em infraestrutura para atender às necessidades básicas a preços subsidiados ou gratuitamente, desde assistência médica e educação até transporte e comunicações, a fim de
minimizar o custo de vida que empregadores e exportadores tinham de pagar. Mais
importante, a China evitou o serviço da dívida externa criando a sua própria
moeda e mantendo as instalações de produção mais importantes nas suas próprias
mãos.
As exigências dos EUA conduzem
seus aliados para fora da órbita comercial e monetária do dólar-OTAN
Tal como
numa tragédia grega clássica, a política externa dos EUA está a provocar
precisamente o resultado que mais teme. Abusando dos seus próprios aliados da OTAN,
os diplomatas dos EUA estão a provocar o cenário de pesadelo de Kissinger, unir
Rússia e China. Enquanto os aliados dos EUA são instruídos a arcar com os
custos das sanções dos EUA, a Rússia e a China estão a beneficiar-se ao serem obrigadas
a diversificar e tornar suas próprias economias independentes da dependência
dos fornecedores americanos de alimentos e outras necessidades básicas. Acima
de tudo, estes dois países estão criando seus próprios sistemas de crédito e de
compensação bancária desdolarizados e mantendo suas reservas monetárias
internacionais na forma de ouro, euros e divisas um do outro para conduzirem
seu comércio e investimento mútuos.
Esta
desdolarização proporciona uma alternativa à capacidade unipolar dos EUA de obterem
crédito externo gratuito por meio do padrão dos títulos do Tesouro por reservas
monetárias mundiais. À medida que os países estrangeiros e seus bancos centrais
desdolarizam, o que sustentará o dólar? Sem a linha de crédito gratuita
fornecida pelos bancos centrais a reciclarem automaticamente as despesas das
forças armadas no estrangeiro dos Estados Unidos e outros gastos no exterior de
volta para a economia dos EUA (apenas com um retorno mínimo), como podem os
Estados Unidos equilibrar seus pagamentos internacionais face à sua
desindustrialização?
Os Estados
Unidos não podem simplesmente reverter sua desindustrialização e dependência da
mão-de-obra chinesa e de outros países asiáticos trazendo a produção de volta
para casa. O país construiu uma sobrecarga rentista demasiado
alta na sua economia para que seu trabalho seja capaz de competir
internacionalmente, dadas as necessidades orçamentais dos assalariados dos EUA
a fim de pagar altos e crescentes custos de habitação, educação, serviço da
dívida, seguro de saúde e serviços de infraestrutura privatizados.
O único meio
de os Estados Unidos sustentarem seu equilíbrio financeiro internacional é por
meio dos preços de monopólio das exportações das suas armas, produtos
farmacêuticos patenteados e tecnologia da informação e pela compra
do controle da produção mais lucrativa e setores potencialmente extratores de
renda no exterior – por outras palavras, espalhando a política econômica
neoliberal por todo o mundo de um modo que obrigue outros países a dependerem
de empréstimos e investimentos dos EUA.
Este não é o
modo como crescem economias nacionais. A alternativa à doutrina neoliberal são
as políticas de crescimento da China que seguem a mesma lógica industrial
básica pela qual Grã-Bretanha, Estados Unidos, Alemanha e França chegaram ao
poder industrial durante seus próprios arranques industriais com forte apoio
governamental e programas de gastos sociais.
Os Estados
Unidos abandonaram esta política industrial tradicional desde a década de 1980.
Estão a impor sobre a sua própria economia as políticas neoliberais que desde
1991 desindustrializaram o Chile pinochetista, a Grã-Bretanha thatcheriana e as
ex-repúblicas soviéticas pós-industriais, os Bálticos e a Ucrânia. Sua
prosperidade altamente polarizada e alavancada por dívida baseia-se na
inflação do imobiliário e dos preços dos títulos, bem como na privatização
da infraestrutura.
Este neoliberalismo tem sido um caminho para se tornar uma economia
fracassada e, de facto, um estado
fracassado, obrigado a sofrer deflação da dívida, preços crescentes da
habitação e das rendas respectivas à medida que as taxas de ocupação por
proprietários diminuem, bem como custos médicos exorbitantes e outros
custos resultantes da privatização daquilo que outros países fornecem gratuitamente
ou a preços subsidiados como direitos humanos – saúde, educação, seguro
médico e pensões.
O êxito da
política industrial da China com uma economia mista e controle estatal do
sistema monetário e de crédito levou estrategas dos EUA a temerem que economias
da Europa Ocidental e da Ásia possam descobrir a vantagem de se integrarem mais
estreitamente com a China e a Rússia. Os EUA parecem não ter resposta a tal
reaproximação global com a China e a Rússia, exceto sanções econômicas e
beligerância militar. Essa postura de Nova Guerra Fria é cara, e outros países
estão a recusar-se a arcar com o custo de um conflito que não traz benefícios
para si mesmos e, na verdade, ameaça desestabilizar seu próprio crescimento
econômico e independência política.
Sem os
subsídios desses países, especialmente porque China, Rússia e seus vizinhos
desdolarizam suas economias, como podem os Estados Unidos manter os custos em
balança de pagamentos dos seus gastos militares no exterior? Cortar esses
gastos e, de fato, recuperar a auto-suficiência industrial e o poder econômico
competitivo exigiria uma transformação da política americana. Tal mudança
parece improvável, mas sem ela, por quanto tempo a economia
pós-industrial rentista da América conseguirá forçar outros
países a fornecer-lhe a riqueza econômica (economic affluence) (literalmente
fluxo de entrada, flowing-in) que ela já não produz mais em casa?
[1] www.state.gov/briefings/department-press-briefing-january-27-2022/. Ignorando os comentários de repórteres de que
"o que os alemães disseram publicamente não corresponde exatamente ao que
você está a dizer", ela explicou as táticas dos EUA para travar o Nord
Stream 2. Contrariando o argumento de um repórter de que "tudo o que eles
precisam fazer é ligá-lo”, ela disse: “Como o senador Cruz gosta de dizer …
atualmente é um pedaço de metal no fundo do mar. Ele precisa ser testado.
Precisa ser certificado. Precisa ter aprovação regulamentar”. Para uma revisão
recente da geopolítica cada vez mais tensa em acção, consulte John Foster,
“Pipeline Politics hits Multipolar Realities: Nord Stream 2 and the Ukraine
Crisis”, Counterpunch, 3/fevereiro/2022.
[2] Andrew Higgins, “Fueling a Geopolitical
Tussle in Eastern Europe: Fertilizer”, The New York Times, 31/janeiro/2022. O proprietário planeja
processar o governo da Lituânia por danos avultados.
[3] Ministério dos Negócios Estrangeiros da
Rússia, “Respostas do ministro dos Negócios Estrangeiros Sergey Lavrov às
perguntas do programa Voskresnoye Vremya do Channel One”, Moscovo,
30/Janeiro/2022. Johnson’s Russia List, 31/janeiro/2022, #9.
08/Fevereiro/2022
[*] Economista.
O original
encontra-se em thesaker.is/americas-real-adversaries-are-its-european-and-other-allies-the-u-s-aim-is-to-keep-them-from-trading-with-china-and-russia/
Este artigo
encontra-se em resistir.info