segunda-feira, 30 de agosto de 2021

“A História também pode se repetir como tragédia” UMA ENTREVISTA COM AILTON KRENAK

 Ailton Krenak, um dos principais intelectuais indígenas no país, conversou com a Jacobin sobre catástrofe climática, crise do capitalismo, surgimento do marxismo e a possibilidade de imaginarmos outros mundos por meio da tradição de resiliência de todos os povos minoritários no mundo.

Krenak apresenta a publicação durante a Semana de Ciências Sociais na USP|Gustavo Rubio-ISA.

ENTREVISTADO POR
Hugo Albuquerque & Jean Tible  - 26/03/20

Em dias catastróficos como estes, enquanto o Brasil e o mundo ardem com a febre do coronavírus, mas também com toda realidade socioeconômica inclemente, que não permite à humanidade e o mundo descansar e se curar, publicamos a entrevista inédita concedida por Ailton Krenak para Jean Tible e Hugo Albuquerque.

Em 1987, durante a Assembleia Constituinte, um gesto chamou a atenção do mundo e entrou para a História: Ailton Krenak foi à tribuna discursar e enquanto falava, ele pintava seu rosto com a tinta negra de jenipapo, que expressa o luto para o seu povo, para denunciar o descaso dos deputados constituintes com os indígenas, os quais foram perseguidos, dizimados e tiveram suas terras tomadas e privatizadas pelo empreendimento colonial branco, desaguando em um Estado genocida e explorador.

Ailton, com aquele gesto poderoso, decisivo para a aprovação do sistema de proteção ao índio, questionava a opressão de séculos contra os indígenas e, sobretudo, de seu povo, os Krenak, que quase foi totalmente dizimado no século XX, após sofrerem séculos com uma repressão particularmente cruel, mesmo para os padrões coloniais luso-brasileiros.

Os Krenak — “cabeça da terra” ou “cabeça na terra”, em virtude de seus ritos e de sua relação com a terra e, também, de um importante líder –, como o próprio Ailton sublinha, já testemunharam a história com muitos outros nomes, mas ele corresponde a um número de famílias e grupos denominados anteriormente como “aimorés” — pela forma como os tupi os chamavam — ou, mais comumente, pela denominação hostilizante e pejorativa dada pelos brancos durante o período colonial e início da história brasileira independente: “botocudos”.

Importante lembrar a lição de Eduardo Viveiros de Castro sobre a distinção entre as “as palavras ‘índio’ e ‘indígena’, que muitos talvez pensem ser sinônimos, ou que ‘índio’ seja só uma forma abreviada de ‘indígena’. Mas não é. (…) oram chamados de ‘índios’ por conta do famoso equívoco dos invasores que, ao aportarem na América, pensavam ter chegado na Índia. ‘Indígena’, por outro lado, é uma palavra muito antiga, sem nada de ‘indiana’ nela; significa ‘gerado dentro da terra que lhe é própria, originário da terra em que vive’. Há povos indígenas no Brasil, na África, na Ásia, na Oceania, e até mesmo na Europa. O antônimo de ‘indígena’ é ‘alienígena’, ao passo que o antônimo de índio, no Brasil, é ‘branco’, ou melhor, as muitas palavras das mais de 250 línguas índias faladas dentro do território brasileiro que se costumam traduzir em português por ‘branco’, mas que se refere a todas aquelas pessoas e instituições que não são índias”.

O índio como invenção do aparato colonial é sucedido pela retratação de outros povos de maneiras ofensivas, para legitimar processos genocidas: quem hoje chamamos de povo Krenak eram chamados de temíveis “botocudos” serviu para motivar campanhas de extermínios ao longo do tempo: quando “Dom João VI chega ao Brasil em 1808, ele foi convencido pelos colonos a fazer a guerra de extermínio contra os ‘botocudos’”.

Habitantes da região do médio Rio Doce em Minas Gerais, rio assassinado pelo rompimento da barragem de Mariana em 2015, os Krenak foram jogados em um reformatório para serem militarizados e servirem como projeto piloto da infame guarda indígena durante a Ditadura Militar.

Hoje, Ailton Krenak sublinha que a volta dos militares ao poder demonstra que a “História pode se repetir como tragédia” e que, antevendo o que resultaria na crise atual, “a minha observação da História é que ela é cheia de surpresas. Quando algumas nações parecem estar surfando no bem-estar, vem uma tragédia e muda tudo. E lembra que “ao mesmo tempo que nós, os indígenas, somos a parte da humanidade pronta a desaparecer, nós também somos a parte da humanidade que criou anticorpos para entender como habitar outros mundos. Quem sabe, quem sempre esteve com o dedo no gatilho para fazer gente desaparecer não acabe desaparecendo antes da gente?”. Confira a entrevista completa.

Como está a luta dos Krenak hoje? 

AK - Eu me lembro que na década de 1970, usávamos um termo para identificar situações como aquela que havia entre os indígenas e o Estado brasileiro: questão. Assim como havia a questão palestina e a questão árabe também havia a questão indígena. Com a chegada da década de 1990 e junto com o “fim da História” também veio o fim da questão, inclusive da questão indígena. Para nós, no entanto, nunca houve o fim dessa questão. Os Krenak e a luta hoje são a persistência da questão indígena. 

O pequeno agrupamento de pessoas que chegou ao século XXI com o nome de “povo Krenak”, já passou por inúmeras transfigurações, no sentido que dizia Darcy Ribeiro: essa gente que ele chamava de Povos-Testemunhos, por estar aqui muito antes dos europeus. Então nesse tempo antes do europeu, essa gente olhou e testemunhou a História nos últimos séculos sob vários outros nomes.

O nome que eles carregaram até o século XIX era o de “botocudos”, um apelido pejorativo. Quando Dom João VI chega ao Brasil em 1808, ele foi convencido pelos colonos a fazer a guerra de extermínio contra os “botocudos”, que, na verdade, não era um único povo, mas sim vários grupos de famílias linguísticas parecidas. Botoque é tampa de vaso, de barril. E eles ficaram com essa denominação hostilizante, a qual serviu para justificar uma agressão particularmente mais dura, ao longo do século XIX,  por parte do Estado brasileiro. 

Quando ocorre a virada do século XIX para o XX, o impacto das viagens de naturalistas europeus como Georg Heinrich von Langsdorff, que tiveram contato com os “botocudos”, começa a ressoar junto a vanguarda europeia e narrar algo mais próximo da realidade histórica: “encontramos um povo [os Krenak] segregado, hostilizado, cercado em acampamentos por colonos totalmente enlouquecidos, que querem tomar suas terras, enquanto roubam e vendem suas crianças Krenak no mercado, invadem e queimam suas aldeias matando-os”.

Os naturalistas mostram um povo em fuga no contexto de uma invasão constante. Isso caracterizou a questão indígena no século XX. Essa questão atravessou a vida dessas famílias até que elas passaram a ser reconhecidas como “povo Krenak”. Mas isso não fez cessar a violência sobre essas famílias, uma agressão cujo objetivo sempre foi a extinção mesmo. 

Na década de 1950, quando eu nasci, havia sessenta e poucos indivíduos que se identificavam como parte dessas famílias. Eram quatro matriarcas e suas crias, pois, os homens tinham sido todos exterminados. Apenas quatro mulheres com seus filhos e noras enfrentando um mundo que queria acabar com elas.

São essas pessoas que vão enfrentar a experiência da ditadura militar nos anos 1960-1970, quando foi criado, inclusive, um “reformatório” para essas famílias: o reformatório Krenak.

Foi um processo programado para extinção de um punhado de gente, só porque eles eram portadores de uma memória perigosa. Como o sistema, esse demônio, consegue farejar as memórias que ele quer excluir? 

Do mesmo modo que o índio é inventado por esse sistema, os botocudos também são inventados. E aí chegamos a 1964. E como foi de lá até hoje?

AK - Sim, exatamente. Primeiramente, precisamos atravessar um túnel que inclui o que o Brasil viveu de 1964 até 1985, a ditadura militar. Aquele período pesado, os anos chumbo, foi um período cinzento para nós. Ao mesmo tempo que era um momento de muita repressão, também foi uma época na qual emergiu de forma mais sólida a questão indígena, que deixou de ser um assunto local e passou a ser uma temática mundial. 

Organismos como a Survival International, a Anistia Internacional e várias outras agências de direitos humanos começaram a reconhecer que o Brasil estava praticando genocídio contra os povos indígenas. 

Nessa lista, estavam, dentre os povos ameaçados de extinção, as famílias Krenak. Naquele período, a terra indígena no médio Rio Doce na qual as famílias Krenak estavam, na verdade, confinadas pelo Estado, foi assaltada por fazendeiros e grileiros. Esses posseiros ilegais agiam em conluio com os órgãos estatais durante a ditadura e, a rigor, tomaram a terra dos índios. 

Havia uma empresa de colonização em Minas Gerais chamada Rural Minas, uma companhia do governo do Estado de Minas anterior ao próprio Incra [Instituto Nacional de Colonização e de Reforma Agrária, criado em 1970] que servia às questões fundiárias. Essa empresa, a partir de 1967, deu títulos de propriedade aos invasores, desfazendo, na prática, o ato que criou a terra indígena dos Krenak, e as famílias que tentaram permanecer lá eram arrancadas — e muitas dessas pessoas se tornaram prisioneiras no reformatório Krenak.

Por sinal, o reformatório Krenak, para além de ser esse depósito de famílias desalojadas do médio Rio Doce, tinha uma proposta de militarização, recrutando os jovens indígenas para se tornarem soldados. Eles criaram uma coisa chamada “guarda rural indígena”. O piloto dessa guarda rural eram os Krenak. Esse caso mineiro serviu de embrião para o que foi feito na Amazônia.

Esses indígenas eram submetidos a treinamento militar, eram torturados, esmagados em sua identidade, ganhavam uma farda, ficavam sob a disciplina militar e eram induzidos a operar como vigias de seus próprios parentes. Eles reprimiam seus parentes a ter um comportamento adequado frente a Comissão de Assuntos Indígenas do governo. 

Até essa época havia o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado pelo marechal Rondon no início do século XX. Enquanto o marechal estava vivo, ele imprimia ordens claras sobre o órgão, mas quando ele ficou mais velho, o SPI se degenerou. Ele se tornou já ali um órgão de delegados federais que escravizavam e exploravam os indígenas.

As comunidades indígenas que viviam fora do controle restrito do SPI tinham alguma autonomia. Eram, é verdade, perseguidas, mas como estavam na floresta havia sempre uma rota de fuga.

Então os povos indígenas estiveram nos últimos séculos enfrentando uma questão. Que é o sentido que essa palavra carrega. Que é uma espécie de enigma. Questão é uma espécie de paradigma que não consegue se desvelar, uma espécie de tranca: a incapacidade de superar uma crise nas relações onde quem tem o poder de decidir o jogo é o Estado, que é uma entidade sobrenatural, que tem o direito de deixar viver ou matar. O Estado pode matar que não é crime. O Estado é a única entidade que pode fazer a guerra.

O Estado detém o monopólio do mal.

AK - O Estado serve para vigiar e punir como disse Michel Foucault.

A questão indígena foi eclipsada e a lua é algo muito caro à sua cultura, com o chamado “fim da História”. Como enxergar o paradoxo de vocês terem arrancado do Estado esse arbítrio absoluto sobre os indígenas na Constituição de 1988 justo nesse momento?

AK - Eu vejo isso assustado como um truque desses fenômenos da história. E pensar, por exemplo, que a ideia de que esses povos originários não teriam história, que esses povos são fora da história. Toda a literatura e talvez até os Tristes Trópicos de Claude Lévi-Strauss, que ele publicou em 1955, dizia que os índios não têm história. 

Lévi-Strauss deu um cutucão nos outros antropólogos ao dizer que: “é claro que eles têm história, mas outra história”. Surge uma chave entre o entendimento da História e as memórias que esses povos carregam, que são o guia de sua continuidade e de sua potência de reprodução cultural.  

A captura daquele momento que a questão indígena se comunica com o sentido mais amplo de uma história que estava no fim, mas ao mesmo tempo misturava tudo. O anúncio da globalização colocou todo mundo num liquidificador gigante: não faz mais diferença se você está na Turquia, na África ou na América do Sul. A banalização do mal sobre a vida de povos de variados lugares ganha o mesmo nivelamento, mas também um ponto em comum. 

É por isso que começam a se constituir espaços de discussão, fóruns e tribunais internacionais, como o Tribunal Internacional Bertrand Russel, que reconheceu que o Brasil cometeu genocídio contra seus indígenas, graças a denúncia do nosso primeiro deputado indígena Mário Juruna em 1980. A situação se escancarou para o mundo inteiro. Revelando outras ocultações, a pior delas é de que “não haveria mais indígena no Brasil”.

O Eduardo Viveiros de Castro gosta de exemplificar esse período com aquele episódio do embaixador brasileiro, que estava em Paris, quando Lévi-Strauss estava preparando sua primeira viagem ao Brasil. Eis que o embaixador pergunta o que ele viria fazer no Brasil e ele responde: “eu vou conhecer os indígenas, entender melhor a situação dele”. O diplomata responde: “ah que pena, você vai ter de fazer outra coisa, pois acabaram os índios no Brasil”. 

Lévi-Strauss veio mesmo assim e deu no que deu: a chave abriu a tranca e mostrou que não apenas os indígenas não tinham acabado no Brasil como, também, demonstrou que o Brasil não tinha conseguido acabar com os indígenas.

A constatação de que o Estado brasileiro tentou acabar com os indígenas, mas não conseguiu, gerou uma enorme discussão: o que restou dos indígenas no Brasil se misturou com a realidade de outros povos minoritários no mundo, dando abertura para iniciativas como a Declaração Internacional dos Direitos dos Povos Indígenas do Mundo de 2007.

A gente saiu do trato jurídico com o Estado brasileiro para um trato jurídico internacional. A questão que estava na rota do desaparecimento manifestou-se de uma maneira tão surpreende que interveio a história mundial. E os indígenas que eram um povo sem História,, voltou à cena, de uma forma tão determinada, como se tivesse reconhecendo seu destino de ser testemunha da sua própria história, mas também testemunha da história do branco.

Hoje, eu acredito que no mundo inteiro, os povos indígenas da Nova Zelândia, Austrália, África, Brasil e Canadá são as testemunhas mais duras que os Estados nacionais colonialistas têm diante de si. Se a gente entender os indígenas não como a invenção do português, mas com uma constatação de que grande parte da humanidade foi excluída da narrativa, todos os excluídos ficam na condição de indígenas. 

Talvez aquilo que tem sido mencionado como devir-índio seja a ideia mais ampla que inclui todos aqueles que não fazem parte do trato do Estado. Que não são constituídos dentro do contrato social dos Estados nacionais, pois, transbordam essas beiradas para outras maneiras de estar no mundo. Isso possibilita aquilo que a gente chama de cosmovisão: e isso está para além da interpretação geográfica ou geopolítica do mundo, porque estabelece rotas de contato com outras esferas. Não só com a ideia de um continente ou de um país ou um planeta, que são rotas alimentadas por uma cosmovisão.

A terra, enfim, é um dos nossos sítios, mas a capacidade de recriar a vida que essas memórias e esses povos tão plurais têm no mundo inteiro habitam também outras dimensões. Suas narrativas, sua expressão para além da circunstância material da vida, criam mundos, subjetividades. E uma potência subjetiva tão maravilhosa que ela quase que admite que se esse mundo acabar, essa humanidade que nós estamos anunciando, ela é capaz de recriar mundos para si. Mas ela sempre foi excluída do mundo.

Uma vez como tragédia, a outra como farsa. Esses militares que exterminaram, que confinaram vocês em campos de concentração, militarizando-os, colocando Krenaks contra Krenaks, estão de volta ao poder. Como é para vocês isso?

AK - A História pode se repetir como tragédia. Eu tenho dificuldades de ler essas manobras. Eu tenho dificuldades de comparar esses períodos e fazer uma leitura sobre o que vem, pois, o imprevisto tem uma capacidade de intervir na nossa experiência vivida, que faz a gente suspeitar disso que seria um futuro imediato e próximo.

Mas pensar que o teremos pela frente uma farsa pode ser um erro. Se nós formos informados que a História não se repete, ou se repete como farsa, nós podemos cair num engano e sermos surpreendidos por uma tragédia. Se a gente olhar a História no final do século XX, ver o que foi a transição entre a polaridade capitalismo vs comunismo, queda do Muro de Berlim, União Europeia para, agora, cair em um momento no qual ocorre o fim do trato que russos e norte-americanos fizeram, quanto à mitigação de suas hostilidades mútuas, me parece que não estamos diante de uma farsa, mas de uma tragédia muito mais ampla e grave do que a gente teve no século XX.

Eu suspeito muito desse tempo que nós estamos vivendo. Eu estou mais desconfiado que o Guimarães Rosa pelo que vem pela frente. Ele sempre alerta a gente para não ficarmos confiantes demais no que está vindo. A cada instante pode abrir diante da gente um abismo. Não é para a gente ficar paranoico diante de um mundo em parafuso, mas é para ficar alerta feito um escoteiro sabendo que pode aparecer de qualquer canto da História uma monstruosidade.

A minha observação da História é que ela é cheia de surpresas. Quando algumas nações parecem estar surfando no bem-estar, vem uma tragédia e muda tudo. Seja com o aparato das guerras seja aquilo que é atribuído à natureza. Estamos diante de uma monumental tragédia climática. Quando chamamos ela de climática, estamos reduzindo num termo coisas que têm um desdobramentos que nem conseguimos sequer relacionar. 

Isso afeta a sobrevivência humana, tanto no sentido do suprimento de nossas necessidades de abrigo, alimentação e cuidado, onde todos nós, não importa de que lugar você esteja, estamos na mesma canoa. Podemos dizer que a canoa pode afundar, mas tem uma parte que está blindada, pensa que está ou pelo menos vai lutar para continuar assim.

Quando pensamos nos povos minoritários, até nisso temos o risco do equívoco. Pois, esses povos depois que a ONU convocou a Declaração Internacional dos Direitos dos Povos Indígenas concluiu que tem uma população indígena estimada no planeta hoje de 400 milhões, o que não é pouco. 

Mesmo considerando algum equívoco ou manipulação nessas estatísticas, há uma boa parte da população planetária que está vulnerável, do ponto de vista de todas as relações institucionais, os que as torna as vítimas em potencial de uma catástrofe ambiental ou política.

Assim, quando atinamos com essa ideia de vulnerabilidade, ficamos diante de uma equação muito curiosa: porque ao mesmo tempo que nós, os indígenas, somos a parte da humanidade pronta a desaparecer, nós também somos a parte da humanidade que criou anticorpos para entender como habitar outros mundos. Quem sabe, quem sempre esteve com o dedo no gatilho para fazer gente desaparecer não acabe desaparecendo antes da gente?

Com alguma sorte sim. E esse intermezzo democrático faz algum sentido para os Krenak?

AK - O pacto colonial só serve para ele mesmo. Ele não abre perspectiva com o mundo dos excluídos. Ele só serve para si mesmo como uma autoajuda. As experiências controladas de democracia no mundo, elas são só isso mesmo: experiências controladas. Elas são eventos que se expandem para além dos limites cogitados pelo capitalismo. 

As corporações, já faz muito tempo, capturaram esse lugar de assembleia, de decisão sobre como a governança do mundo será feita e, assim, passaram a nomear meros gerentes. Esses caras que ocupam os mandatos de presidente e primeiro-ministro, em diferentes lugares do mundo, são, em geral, ex-CEOs ou gerentes de uma dessas corporações. Então, isso é uma escolinha. Eles se preparam para dar um próximo passo para integrar a vida política e social dos povos de acordo com o programa de suas corporações. 

Das minhas leituras de alguma produção dos pensadores ocidentais eu, criticamente, entendo que eles estão dando voltas em torno dessa mesma questão: os limites dessa liberdade que o mundo ocidental concede aos povos. Os eventos da História comprovam isso.

Enquanto foi interessante para as potências europeias ter escravidão no mundo, a periferia era o lugar dessa produção de escravos. Tinha uma parcela da humanidade que estava totalmente excluída de tudo, inclusive de sua própria humanidade, reduzidos a mera peças num jogo. 

Quando o ocidente decidiu abrir mais um círculo, mais uma camada de circulação, ele aliviou na questão da escravidão para transformar essas pessoas em clientes e trabalhadores. E o mundo do trabalho se expandiu para que aquela gente que era escrava agora pudesse virar “classe trabalhadora”.

Foi isso que o marxismo descobriu: aquela gente que veio do mundo sem direito algum e agora eram convertidos em trabalhadores, e que podia aspirar uma participação ativa num mundo com igualdade. Como se você estivesse pregando uma nova religião para um mundo pagão, que ansiava um novo credo. Então tivemos uma engajamento enorme no mundo inteiro de gente que buscou ampliar os espaços de autonomia e liberdade dessas relações.

As crises dessas relações ficou tão aguda, que ela implodiu por dentro: o mundo do trabalho está implodido, por uma disrupção que gera coisas como o empreendedorismo. É uma reinvenção do sistema para criar uma nova válvula para esses corpos em movimento poderem seguir a experiência, saturada, de um planeta superpopuloso, que, se essas pessoas não tiverem um programa para rodar, elas vão entrar em colapso. Então precisa sempre abrir uma janela para daqui mais um pouco. É uma improvisação em cima de improvisação.

Por isso eu questionei a ideia da repetição como farsa. Ninguém controla o próximo episódio. E não temos um número de pessoas, em quantidade suficiente, interessadas e preocupadas em pensar alternativas. Nós perdemos a capacidade de produzir pessoas com essa qualidade. Nós estamos nos tornando um mundo ordinário. 

Eu me atrevo a dizer a dizer que acabou a produção de pensamento sobre o tempo que vivemos, com a potência de interferir no curso da História em que vivemos. Nós não temos mais grandes pensadores, grandes “estadistas” — aquela ideia do “estadista”, que é uma coisa sempre limitada, uma vez que o Estado entrou em colapso faz tempo.

E no fim a sabedoria do diabo não é fingir que não existe? O próprio capital no sentido de desmontar o trabalho como a gente conhecia como forma de controlar melhor.

AK - É, exatamente, fingir que não existe e deixar o circo pegar fogo.

Voltando aos tempos atuais, os Krenak depois do ecocídio do Rio Doce pelo rompimento da barragem de Marina. Como está sendo a resistência dos Krenak neste instante?

AK - A resistência nunca muda. Resiste quando são 23 famílias. Resiste quando são 8 famílias. Resiste quando são 100 famílias. Resiste. A célula tem a capacidade de reproduzir. Enquanto ela tem capacidade de se reproduzir com qualidade, ela sempre vai contrariar essa tendência de entropia, de desaparecimento. Ela vai criar e recriar mundo.

É como se nós fossemos chapados por eventos negativos recorrentes. Isso te torna muito desconfiado em relação ao futuro. Mas como também temos uma matriz cultural fundada numa outra perspectiva, na qual o futuro não é amanhã, cresce também a resistência — e eu tenho a impressão, que a palavra resiliência talvez seja a melhor palavra para nossa experiência. 

A resiliência não é a mera resistência a um evento em si, mas sim a capacidade interna de se reconfigurar diante do momento. É mais ou menos o que o camaleão faz, quando muda de lugar e luz para se reconfigurar e aumentar a sua potência. 

Estou cada vez mais observando que isso não é uma experiência apenas dos Krenak, mas de muitos povos ao redor do mundo: os curdos, os ciganos e muitos povos de matriz africana pelo mundo — e é provável que a maior parte da população do continente africano vá estar em outras partes, em virtude do complô colonialista.

Para concluir: o que podemos esperar de um futuro que não é o amanhã?

AK - Eu tenho uma dificuldade enorme com aquele molde intelectual de pensar o mundo pelas partes. Precisamos pensar o todo e interiorizar isso como um jeito de estar no mundo, e isso pode ser uma experiência capsular onde a gente admite a nossa natureza de célula, para além e contra todo personalismo.

É também estar atento ao quotidiano. “Todo dia o sol levanta e a gente canta o sol de todo dia, vem a tarde e o dia gora… e a gente chora no cair da tarde…”. E admitir que cantar, sorrir e chorar é o nosso programa. A gente não precisa ficar desestruturado diante do choro. A gente não precisa ficar pirado diante da alegria. A gente pode buscar alguma coisa entre o nascer e o pôr do sol, de uma maneira mais parecida com o que a natureza faz há bilhões de anos. Isso que a gente chama de natureza é uma criação cultural que existe antes de nós, se recria desde sempre e ensina para a gente como podemos fazer para imitá-la. Eu estou interessado em imitar — e não complicar — a natureza.

Postado da : https://jacobin.com.br/2020/03/a-historia-tambem-pode-se-repetir-como-tragedia/?fbclid=IwAR2rHJ2eUsp1w_njcDSpo4kZr37yRH9xZTs7Dfig4RfriTNtvXKtnoIiObM


sábado, 28 de agosto de 2021

Série Afeganistão III - Com a palavra a Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão (RAWA)

 Missão Feminina Afegã , 21/08/2021

 Uma piada dizer que valores como “direitos das mulheres”, “democracia”, “construção da nação” etc. faziam parte dos objetivos dos EUA / OTAN no Afeganistão!

A Missão das Mulheres Afegãs entrou em contato com a RAWA para atender às suas necessidades, neste momento urgente. Nesta breve sessão de perguntas e respostas com o co-diretora da AWM, Sonali Kolhatkar, a RAWA  nos explica o desdobramento da situação no local, como elas a veem.



Sonali Kolhatkar: Durante anos, a RAWA se manifestou contra a ocupação dos EUA e agora que ela acabou, o Talibã está de volta. O presidente Biden poderia ter retirado as forças dos EUA de uma maneira que teria deixado o Afeganistão em uma situação mais segura do que a atual? Ele poderia ter feito mais para garantir que o Taleban não fosse capaz de assumir o controle tão rapidamente?

RAWA: Nos últimos 20 anos, uma de nossas reivindicações foi o fim da ocupação dos EUA / OTAN e,  melhor ainda, se levassem seus fundamentalistas islâmicos e tecnocratas com eles e deixassem nosso povo decidir seu próprio destino. Esta ocupação resultou apenas em derramamento de sangue, destruição e caos. Eles transformaram nosso país no lugar mais corrupto, inseguro, da máfia das drogas e perigoso, especialmente para as mulheres.

Desde o início, previmos esse resultado. Nos primeiros dias da ocupação americana do Afeganistão, a RAWA declarou em 11 de outubro de 2001:

“A continuação dos ataques dos Estados Unidos e o aumento do número de vítimas civis inocentes não só dão uma desculpa ao Taleban, mas também causará o empoderamento das forças fundamentalistas na região e até mesmo no mundo.”

O principal motivo pelo qual éramos contra essa ocupação foi o apoio ao terrorismo sob a simpática e falsa bandeira da “guerra ao terror”. Desde os primeiros dias em que os saqueadores e assassinos da Aliança do Norte voltaram ao poder em 2002 até as últimas chamadas negociações de paz, negócios e acordos em Doha e a libertação de 5.000 terroristas das prisões em 2020/21, era muito óbvio que mesmo a retirada não teria um bom final.

O Pentágono prova que nenhuma das teorias de invasão ou ocupação acabou em condições seguras. Todas as potências imperialistas invadem países por seus próprios interesses estratégicos, políticos e financeiros, mas por meio de mentiras e da poderosa mídia corporativa escondem seus reais motivos e agenda.

É uma piada dizer que valores como “direitos das mulheres”, “democracia”, “construção da nação” etc. faziam parte dos objetivos dos EUA / OTAN no Afeganistão! 

Os EUA estavam no Afeganistão para provocar instabilidade e motivar o terrorismo na região, fazer um cerco as potências rivais, especialmente China e Rússia, e minar suas economias por meio de guerras regionais. Mas é claro que o governo dos EUA não queria uma saída tão desastrosa, embaraçosa e vergonhosa , deixando para trás tal comoção que foram forçados a enviar tropas novamente em 48 horas para controlar o aeroporto e evacuar com segurança seus diplomatas e funcionários.

Acreditamos que os EUA deixaram o Afeganistão por causa de suas próprias fraquezas, não derrotados por suas criaturas (o Talibã). Existem duas razões importantes para esta retirada. 

O principal motivo é a multifacetada crise interna nos Estados Unidos. Os sinais do declínio do sistema americano foram vistos na fraca resposta à pandemia de Covid-19, no ataque ao Capitólio e nos grandes protestos do público americano nos últimos anos. Os formuladores de políticas foram forçados a retirar as tropas para se concentrar em questões internas candentes.

A segunda razão é que a guerra afegã foi uma guerra excepcionalmente cara, cujo custo chegou a trilhões, tudo retirado do dinheiro do contribuinte. Isso afetou tanto financeiramente os EUA que eles tiveram que deixar o Afeganistão.

As políticas de guerra provam que seu objetivo nunca foi tornar o Afeganistão mais seguro, muito menos agora quando eles estão partindo. Além disso, eles também sabiam que a retirada seria caótica, mas mesmo assim foram em frente e o fizeram. Agora o Afeganistão está no centro das atenções novamente devido ao Talebã ter voltado ao poder, mas esta tem sido a situação nos últimos 20 anos, quando centenas de pessoas  foram mortas e nosso país destruído, e muito raramente,  esse fato  foi relatado ao mundo pela mídia. 

Sonali Kolhatkar: A liderança do Taleban está dizendo que respeitará os direitos das mulheres, desde que cumpram a lei islâmica. Alguns meios de comunicação ocidentais estão pintando isso de uma forma positiva. O Talibã não disse a mesma coisa há 20 anos? Você acha que houve alguma mudança na atitude deles em relação aos direitos humanos e aos direitos das mulheres?

RAWA: A mídia corporativa está apenas tentando colocar sal nas feridas de nosso povo devastado; eles deveriam ter vergonha de si mesmos da maneira como tentam adoçar o Talibã brutal. O porta-voz do Talebã declarou que não há diferença entre sua ideologia de 1996 e a de hoje. E o que eles dizem sobre os direitos das mulheres são as frases exatas usadas durante sua regra sombria anterior: implementar a lei Sharia.

Hoje, o Talebã declarou anistia em todas as partes do Afeganistão e seu slogan é "o que a alegria da anistia pode trazer, a vingança não". Mas, na realidade, eles estão matando pessoas todos os dias. Ainda ontem, um menino foi morto a tiros em Nangarhar apenas por carregar a bandeira nacional afegã tricolor em vez da bandeira branca do Talibã. Eles executaram quatro ex-oficiais do exército em Kandahar, prenderam um jovem poeta afegão Mehran Popal na província de Herat por escrever postagens anti-Talebã no Facebook e sua família não sabe seu paradeiro. Estes são apenas alguns exemplos de suas ações violentas, apesar das palavras “simpáticas” e polidas de seus porta-vozes.

Mas acreditamos que essas afirmações podem ser um dos dramas representados pelo Talebã, apenas para  ganhar mais tempo até que possam se organizar. As coisas aconteceram tão rápido e eles estão tentando construir sua estrutura de governo, criar sua inteligência e fazer o Ministério para a Propagação da Virtude e Prevenção do Vício, que é responsável por controlar os pequenos detalhes do dia a dia das pessoas como a duração da barba, o código de vestimenta e ter um Mahram (companheiro, único pai, irmão ou marido) para mulher. O Talibã afirma que não são contra os direitos das mulheres, mas isso deveria estar dentro da estrutura das leis islâmicas / sharia.

A lei islâmica / Sharia é vaga, e interpretada de várias maneiras, pelos regimes islâmicos, para beneficiar suas próprias agendas e regras políticas. Além disso, o Talebã também gostaria que o Ocidente os reconhecesse e os levasse a sério, e todas essas afirmações fazem parte da construção de uma imagem limpa de si mesmo. Talvez depois de alguns meses dirão que faremos eleições porque acreditamos na justiça e na democracia! Essas pretensões nunca mudarão sua verdadeira natureza, e ainda serão fundamentalistas islâmicos: misóginos, desumanos, bárbaros, reacionários, antidemocráticos e antiprogressistas. Em uma palavra, a mentalidade do Talebã não mudou e nunca mudará!

Sonali Kolhatkar: Por que o Exército Nacional Afegão e o governo afegão apoiado pelos EUA desmoronaram tão rapidamente?

RAWA: Algumas das principais razões são:

1) Tudo foi feito a partir do acordo de entregar o Afeganistão ao Talibã. O governo dos EUA negociando com o Paquistão e outros jogadores regionais tinha um acordo para formar um gov. principalmente composto por talibãs. Portanto, os soldados afegãos  não estavam prontos para serem mortos nessa guerra,  porque sabiam que não havia benefício para o povo afegão, porque fora decidido,  a portas fechadas, levar  o Talebã ao poder. Zalmay Khalilzad é altamente odiado entre o povo afegão devido ao seu papel traiçoeiro em trazer o Talebã de volta ao poder.

2) A maioria dos afegãos entende bem que a guerra que está ocorrendo no Afeganistão não é a guerra dos afegãos e para o benefício do país, mas travada por potências estrangeiras em prol de seus próprios interesses estratégicos e o povo afegão é apenas o combustível da guerra. A maioria dos jovens está se juntando às forças armadas por causa da extrema pobreza e do desemprego, então eles não têm compromisso e moral para lutar. Vale ressaltar que os Estados Unidos e o Ocidente vêm tentando,  há 20 anos,  manter o Afeganistão um país consumidor e têm impedido o crescimento da indústria. Essa situação criou uma onda de desemprego e pobreza, abrindo caminho para os recrutamentos do governo fantoche, do Talibã e do crescimento da produção de ópio.

3) As forças afegãs não estavam tão fracas para derrotar no curso de uma semana, mas estavam recebendo ordens do palácio presidencial para não lutar contra o Talebã e que deveriam se render. A maioria das províncias foi entregue pacificamente ao Talibã.

4) O regime fantoche de Hamid Karzai e Ashraf Ghani chamou o Talebã de “irmãos insatisfeitos” durante anos e libertou muitos de seus comandantes e líderes mais implacáveis ​​das prisões. Pedir aos soldados afegãos que lutassem contra uma força que não é chamada de “inimigo”, mas de “irmão”, encorajou o Talebã e atingiu o moral das forças armadas afegãs.

5) As forças armadas estão infestadas de corrupção sem precedentes. O grande número de generais (principalmente ex-senhores das guerra brutais da Aliança do Norte) (aliados dos EUA,  uma organização político-militar criada pelo Estado Islâmico do Afeganistão em 1996, com o fim de unir diversos grupos que vinham combatendo uns aos outros para lutarem juntos contra o Talibã - Nota do Blogsentados em Cabul arrecadou milhões de $, eles cortaram até mesmo a comida e o salário dos soldados que lutavam nas linhas de frente. “Soldados fantasmas” foi um fenômeno exposto pelo SIGAR. Oficiais de alto escalão estavam ocupados enchendo seus próprios bolsos; eles canalizaram o salário e a ração de dezenas de milhares de soldados inexistentes para suas próprias contas bancárias.

6) Sempre que as forças foram sitiadas pelo Talebã na dura luta, seu pedido de ajuda era ignorado por Cabul. Em vários casos, dezenas de soldados foram massacrados pelo Talebã quando ficaram abandonados sem munição e comida por semanas. Portanto, a taxa de baixas entre as forças armadas foi muito alta. No Fórum Econômico Mundial (Davos 2019), Ashraf Ghani confessou que desde 2014 mais de 45.000 funcionários de segurança afegãos foram mortos, enquanto no mesmo período apenas 72 funcionários dos EUA / OTAN foram mortos.

7) De modo geral, na sociedade, a crescente corrupção, injustiça, desemprego, insegurança, incerteza, fraude, grande pobreza, drogas e contrabando, etc., proporcionou uma base para o ressurgimento do Talibã. 

Sonali Kolhatkar: Qual é a melhor maneira do povo  americano ajudar a RAWA,  o povo e as mulheres afegãs agora?

RAWA: Nós nos sentimos muito sortudos e felizes por ter o povo amante da liberdade dos Estados Unidos conosco durante todos esses anos. Precisamos que os americanos levantem sua voz e protestem contra as políticas de guerra de seu governo e apoiem o fortalecimento da luta popular no Afeganistão contra esses bárbaros.

É da natureza humana resistir e a história dá testemunho. Temos os exemplos  dos movimentos de luta “Ocupar Wall Street” e “Vidas Negras” nos Estados Unidos. Vimos que nenhuma quantidade de opressão, tirania e violência pode impedir a resistência. As mulheres não serão mais algemadas! Na manhã seguinte, após a entrada do Talibã na capital, um grupo de nossas jovens e corajosas mulheres pintou graffiti nas paredes de Cabul com o slogan: Abaixo o Talibã! Nossas mulheres agora têm consciência política e não querem mais viver sob a burca, algo que faziam facilmente há 20 anos. Continuaremos nossas lutas enquanto encontramos maneiras inteligentes de nos mantermos seguras.

Achamos que o desumano império militar dos Estados Unidos não é apenas inimigo do povo afegão, mas a maior ameaça à paz e à instabilidade mundial. Agora que o sistema está à beira do declínio, é dever de todos os indivíduos e grupos amantes da paz, progressistas,  organizações de esquerda e amantes da justiça intensificar e fortalecer suas lutas contra os brutais guerreiros na Casa Branca, no Pentágono e no Capitolio. Substituir o sistema podre por um justo e humano não apenas libertará milhões de pobres e oprimidos americanos, mas terá um efeito duradouro em todos os cantos do mundo.

Agora, nosso medo é que o mundo esqueça o Afeganistão e as mulheres afegãs como durante o regime sangrento do Talebã no final dos anos 90. Portanto, o povo e as instituições progressistas dos EUA e do mundo não devem esquecer as mulheres afegãs.

Vamos levantar nossa voz e continuar nossa resistência e lutar pela democracia secular e pelos direitos das mulheres!

http://www.rawa.org/rawa/2021/08/21/rawa-responds-to-the-taliban-takeover.html

domingo, 22 de agosto de 2021

Série Afeganistão II - Decotificando o discurso da mentira irradiado pelo grande capital -

 

O óbvio difícil:
Tornar transparente a ameaça à humanidade

por Miguel Urbano Rodrigues (Junho/2002)




Ignacio Ramonet, de Le Monde Diplomatique , chamou a atenção para uma evidência ao afirmar que nunca a humanidade esteve tão desinformada como hoje apesar do torrencial fluxo de informação disponível.

A contradição configura uma ameaça. O funcionamento perverso da comunicação social está na raiz de acontecimentos alarmantes.

O velho aforismo de Goebbels segundo o qual uma mentira, à força de repetida, se torna verdade (Salazar dizia "o que parece é") documenta bem o proveito que o sistema de poder norte-americano tem tirado da sua capacidade de impor à humanidade as suas verdades, desinformando-a e manipulando-a.

Uma das ameaças à própria sobrevivência do homem resulta precisamente da extrema dificuldade que as grandes maiorias sentem em compreender fenómenos político-sociais que condicionam dramaticamente o futuro próximo.

Não estamos perante uma situação sem precedentes, embora as consequências, essas sim, possam ser inéditas e trágicas.

O entendimento da História profunda, tal como a concebia Lucien Fèbvre, raramente é assimilado pelas gerações que foram protagonistas de acontecimentos que mudaram a vida nos quais elas emergiram simultaneamente como sujeito e objeto.

Isso ocorreu com a Grécia do século V antes da nossa era, com a Roma dos Antoninos, com a Revolução Inglesa de 1648, com a Grande Revolução Francesa, com a Revolução Russa de Outubro de 1917, e noutras situações de ruptura e inovação.

O mesmo fenómeno do atraso na compreensão do movimento e do significado da história está a repetir-se hoje com a humanidade mergulhada numa crise de civilização provocada pela globalização neoliberal e pela estratégia de dominação perpétua e universal do sistema de poder dos EUA.

O combate eficaz a ameaças devastadoras que impendem sobre a humanidade e a sua neutralização exigem a assimilação pela consciência dos povos de uma realidade: o perigo vem precisamente da engrenagem de poder que se apresenta como guardiã e defensora de valores eternos da condição humana.

Parece fácil desmontar a inversão da realidade, mas, na prática, a tarefa é dificílima.

A máquina da desinformação funciona a partir de um falso axioma maniqueista que divide o mundo em bons e maus.

Vale a pena recordar que Mani, na Pérsia Sassânida, foi há 17 séculos, de certa maneira, um revolucionário, na medida em que rompeu o imobilismo da religião oficial, apresentando como alternativa ao mazdeismo uma nova mundividência. Mas os modernos maniqueistas norte-americanos são ultra-reaccionários.

Os Estados Unidos — a sociedade, o modo de vida, as instituições, os governantes, as suas guerras distantes contra povos indefesos —- encarnariam o bem. Os seus adversários seriam símbolos do mal. Como nação que se auto designa como predestinada, os EUA estariam a assumir a defesa da civilização criada ao longo de milénios contra forças satânicas, mobilizadas para a destruir.

A mensagem é primária, mas o controlo quase absoluto do sistema mediático nesta era da informação instantânea e universal permite atingir em grande parte o objetivo visado.

O discurso maniqueísta e farisaico não convence a intelligentsia , que o repudia, nem milhões de trabalhadores triturados pelas políticas neoliberais, mas perturba as grandes maiorias, confunde-as e, embora não obtenha a sua adesão, neutraliza-as, mantendo-as passivas.

As forças progressistas, identificado o perigo, têm desenvolvido, sobretudo após Seattle, um esforço para lhe fazer frente que assume proporções mundiais. O I e o II Foro Social Mundial, em Porto Alegre, e os muitos Foros alternativos a conclaves do G-7, do FMI, do Banco Mundial, da OMC — ou seja de instrumentos de ação da Santa Aliança do grande capital — traduzem a consciência da necessidade de combater a engrenagem de poder montada pelos senhores do mundo e de estimular o renascimento do espirito de luta em segmentos cada vez mais amplos das massas que sofrem as consequências do neoliberalismo.

Forças representativas de quadrantes ideologicamente muito diferentes e de mundividências culturais também díspares coincidem na rejeição do neoliberalismo, na condenação da instrumentalização e domesticação da ONU e das agressões imperialistas dos EUA. Mas o debate travado e muitas das ações de protesto empreendidas permitiram também verificar que entre forças e personalidades unidas em torno de um diagnóstico comum a convergência acaba quando se procura responder à pergunta: o que fazer?

A unanimidade simbolizada no lema «outro mundo é possível» desfaz-se logo que se coloca uma questão fundamental: como avançar para esse mundo?

O desacordo principia ao ser abordada a temática da alternativa ao neoliberalismo. Condenar a globalização neoliberal e o imperialismo não implica obrigatoriamente a rejeição liminar do capitalismo. O último Foro Social Mundial, em Porto Alegre, deixou transparente, através de comunicações apresentadas, que muitas das destacadas personalidades ali reunidas (apareceram até aliados da direita como o ex-presidente de Portugal, Mário Soares, e ministros de governos da União Europeia) acreditam ainda na possibilidade de uma reforma que humanize o capitalismo, tornando-o aceitável.

Alguns, sem disso tomarem consciência, cumprem, afinal o papel que Lord Keynes, conscientemente, desempenhou com muito talento, após a I Guerra Mundial.

Admito que uma parcela desses intelectuais age de boa fé. As suas intenções reformadoras estão em muitos casos acima de suspeita. Mas falta-lhes a experiência vinda da militância em partidos, movimentos e sindicatos. E essa ensina que o capitalismo é, por essência, desumanizante e, como tal, insusceptível de uma reforma que o torne aceitável para as suas atuais vítimas.

É minha convicção pessoal que no grande e positivo debate gerado pela recusa da globalização neoliberal a prioridade absoluta dada à procura de uma alternativa subalterniza uma questão fundamental: o desmascaramento do inimigo. Sem lhe arrancarmos a máscara não podemos combatê-lo eficazmente.

O objetivo suscita consenso. Mas tendemos a esquecer que esse desmascaramento, em profundidade, está por fazer.

A exegese das estratégias a serem eventualmente adoptadas perde muito do seu interesse prático se não for acompanhada de um trabalho de caracterização da natureza e dos métodos do poder imperial que forjou a globalização neoliberal e lhe garante o funcionamento. Tudo o que havia nesse campo a dizer foi dito? Não. Mas é imprescindível repetir incansavelmente o que tem sido revelado. A assimilação da história contada é sempre muito lenta.

Não tenhamos ilusões. Milhares de milhões de pessoas, talvez a maioria da humanidade, capta uma imagem falsa dos EUA e sobretudo do seu relacionamento com os países do Terceiro Mundo, imagem muito mais próxima da difundida por Washington que da real.

Lenin afirmou que somente a partir do inicio de Maio de 17 o povo da Rússia principiou a compreender que o Governo Provisório da burguesia, cuja missão oficial consistia em aprofundar as conquistas da Revolução de Fevereiro, era na prática um governo de traidores, empenhado em destruí-las.

Noutro contexto histórico, prometendo erradicar da Terra o flagelo do terrorismo e lançar os alicerces da futura idade do bem estar e da paz entre os homens — os EUA estão, afinal, militarizando o planeta através de uma estratégia de terrorismo de Estado que hierarquiza os povos e os divide em bons e maus, fazendo do uso da violência o instrumento de transformação da historia e do alargamento do fosso entre ricos e pobres.

Ronald Reagan, no auge da Guerra Fria, criou a imagem do «Império do Mal», colando o rótulo à União Soviética. George W Bush, agitando o espantalho de terríveis ameaças à segurança dos EUA, retoma a fórmula e inventa os estados bandidos ( rogue states) agrupados no temível «Eixo do Mal».

O PÓLO DO MAL

Não sou moralista. Sempre me repugnou o maniqueísmo político. Mas apetece recorrer a uma paráfrase para iluminar a mentira. Neste inicio do século XXI quem se apresenta à humanidade com despudor amoral são os EUA. Funcionam como "o Polo do mal".

O rol de calamidades desencadeadas pelo sistema de poder dos EUA nos últimos anos não tem precedentes pela sua amplitude planetária

Desde o Reich hitleriano, governo algum concebeu como o dos EUA uma política de relações com o Terceiro Mundo tão marcada por um pensamento fascistizante.

O inventário dos crimes cometidos pelo Estado norte-americano desde o desaparecimento da URSS está feito. Em trabalhos de intelectuais progressistas norte-americanos, como Noam Chomsky, encontramos, alias, as mais completas descrições e analises das agressões, das ignomínias, dos golpes ideados e financiados pela CIA, das intervenções diretas e indiretas que em desafio frontal ao Direito Internacional e à Carta da ONU fizeram dos EUA um Estado terrorista que se coloca acima das leis.

Essa acumulação recorde de crimes contra a humanidade, os coletivos e públicos, e os encobertos (CIA, DEA, AID, etc) continua, entretanto, a ser conhecida e avaliada somente por uma pequena minoria de habitantes da Terra. O controlo da informação e a cumplicidade covarde dos Estados da União Europeia, do Japão, do Canadá e da Austrália (sócios na partilha das riquezas do mundo) e também da Rússia (terceiromundizada e ela própria ameaçada) encobre o rosto e muito da crescente agressividade do sistema de poder onde se localiza o autentico polo do mal.

É assim que desde a Guerra do Golfo, numa escalada assustadora, a política da irracionalidade, do anti-humanismo, da opressão dos povos e da sobrexploração dos trabalhadores, da destruição do ambiente e das culturas nos é diariamente apresentada como mensageira do bem, patamar superior da democracia, síntese das conquistas da civilização e baluarte da sua defesa.

A INVERSÃO DO REAL

A inversão do real, melhor concretizada do que na época de Hitler – porque as instituições que regem a sociedade norte-americana são ainda formalmente democráticas — configura uma tragédia -- é a palavra -- que tende a embrutecer os povos e eliminar as suas potencialidades criadoras e o seu espirito de resistência.

O assalto à razão assume facetas tão absurdas que um cidadão de escassa inteligência, que erige em religião a apologia da violência e da vindita, ocupa em Washington o vértice do sistema de poder que sonha com uma ditadura planetária e –repito-- ameaça a continuidade da vida na Terra.

Por si só aquilo que, sob o beneplácito imperial, está a acontecer na Palestina (um genocídio que ultrapassa em horror as profecias bíblicas veneradas pelos cruzados do novo holocausto) e a guerra que reduziu a escombros antiquíssimas cidades do Afeganistão (talvez hoje o museu arqueológico natural mais rico da humanidade) – a irracionalidade dessa estratégia de indisfarçável barbárie deveria funcionar como alerta dirigido à consciência dos povos.

Estamos, porem, muito longe de uma compreensão suficiente pelas grandes massas da gravidade da ameaça. Daí a necessidade urgente de ao esforço para fazer passar a uma fase superior as lutas contra a globalização neoliberal somarmos um esforço paralelo complementar e simultâneo, que ajude centenas de milhões de pessoas a perceberem que o sistema de poder imperial dos EUA é, como grande inimigo da humanidade, inimigo de cada cidadão da Terra desejoso de paz, de liberdade, de progresso, de felicidade.

Tão fácil e tão difícil !

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