terça-feira, 30 de janeiro de 2024

O “Jornocídio” Palestino

 


Por:André Lobão


Desde o início do massacre de Israel contra os territórios palestinos, já foram mortos mais de 120 jornalistas. O Sindicato dos Jornalistas Palestinos faz apelo por solidariedade classista.

A entidade sindical divulgou neste mês de janeiro um comunicado dirigido a jornalistas e profissionais dos meios de comunicação social em todo o mundo, apelando à salvaguarda dos jornalistas e trabalhadores dos meios de comunicação palestinos e a uma cobertura justa e imparcial.

“Há três meses que os nossos colegas e as suas famílias em Gaza têm sido deliberadamente alvos de Israel, que até agora matou mais de 100 jornalistas e trabalhadores dos meios de comunicação palestinos neste ‘jornocídio’. Embora esta política não seja nova para nós, uma vez que temos sido alvos de Israel durante décadas, a magnitude do horror e da perda de vidas a esta escala não tem precedentes”, diz trecho da nota publicada no site do Sindicato dos Jornalistas Palestinos (PJS).

 

Gaza é o lugar mais perigoso do mundo 

para ser jornalista

A cada dia fica claro que o ataque deliberado de Israel a jornalistas e trabalhadores dos meios de comunicação social é uma clara violação das leis da guerra. Devido à sua natureza sistemática e generalizada, estes ataques devem ser investigados exaustivamente como crime de perseguição contra a humanidade.

“Os nossos coletes de imprensa, em vez de serem um símbolo universal de proteção, tornaram-se alvo da mira israelense, ao ponto dos nossos colegas em Gaza expressarem que usar os seus coletes os faz sentir-se inseguros”, denuncia o sindicato.

“O exército israelense matou mais jornalistas em 10 semanas do que qualquer outro exército ou entidade num ano. E com cada jornalista morto, a guerra torna-se mais difícil de documentar e de compreender”, afirma o Comitê para a Proteção dos Jornalistas.

O PJS informa ter mapeado vários casos de jornalistas que morreram em ataques aéreos às suas casas, muitas vezes com danos limitados em apartamentos circundantes no mesmo edifício, ou foram mortos no trabalho por disparos de drones ou franco-atiradores.

 

A sina de Wael Dahdouh

A história de vida do editor-chefe do escritório do canal de televisão Al Jazeera, do Qatar, na Faixa de Gaza, Wael Dahdouh, reflete bem esse contexto de horror que os profissionais jornalistas vivem na cobertura do genocídio palestino, promovido pelo estado de Israel nos territórios ocupados.

Nas primeiras semanas dos bombardeios israelenses ele perdeu a esposa, dois filhos e um neto. Suas imagens percorrendo o hospital para realizar o reconhecimento dos corpos de seus parentes comoveram o mundo. Em 7 de janeiro, Dahdouh sofreu mais uma perda familiar: mais um filho, Hamza Wael Dahdouh, também repórter da Al Jazeera, foi assassinado em Rafah, sul de Gaza. Quando acompanhado do cinegrafista Mustafa Thuria, teve o carro atingido por ataque aéreo, promovido pela força israelense.

Mais uma vez, circularam pelas mídias as imagens de um inconsolável pai segurando a mão de seu filho morto pela barbárie ensandecida do terror de estado. “A Hamza e a todos os mártires, digo que permaneceremos fiéis. Este é o caminho que escolhemos conscientemente. Oferecemos muito, oferecemos muito sangue, pois este é o nosso destino, e continuaremos. Hamza não era parte de mim, ele era tudo para mim”, disse após o enterro de mais um filho.

 

Um brasileiro denuncia o “jornocídio”

Autor do livro “Artigo 19, Violação da Liberdade de Expressão na Palestina”, o jornalista e fotógrafo brasileiro Lucas Siqueira conta, em sua obra, como o trabalho jornalístico é sistematicamente cerceado por Israel nos territórios palestinos ocupados, violando o Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), que diz: “todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”.

Segundo o autor, a obra é fruto de uma pesquisa científica iniciada em 2021 para a Universidade Paulista (UNIP), em que o objetivo era tratar das violações de direitos humanos que sofrem os jornalistas palestinos e sobre o boicote e a censura interna por parte do Estado de Israel, bem como com a conivência externa de outras instituições de mídia internacional e universidades.

“Na verdade, não era para ser um livro. Ele foi resultado de uma pesquisa científica, e como denuncio, na própria pesquisa, uma das maneiras de se boicotar e silenciar os jornalistas palestinos é a promoção de boicote acadêmico, distorção de narrativas e, no final das contas, acabei passando pelo boicote acadêmico por essa mesma pesquisa”, revela.

Siqueira conta que na entrega do trabalho, em setembro de 2023, obteve a nota mais alta em todos os critérios de avaliação. Em outubro houve a apresentação pública das pesquisas, com os respectivos resultados, mas ele não foi convidado para apresentar o trabalho, fato que o deixou bastante contrariado. No posfácio do livro o jornalista incluiu o e-mail em que recusa, como desagravo, o certificado do XXV Encontro de Iniciação Científica e Tecnológica UNIP/Santander.

“Eu não fui convidado a apresentar essa pesquisa, justamente porque já tinha ocorrido o 7/10. A narrativa sionista estava muito forte e por isso eu não fui convidado, mesmo com a nota que tive. Então me deram o certificado, dizendo que eu tinha apresentado a pesquisa, fato que não aconteceu. Daí surgiu a ideia de publicar o material como um livro, pois já não adiantava publicar somente matérias denunciando o que ocorre na Palestina, com o livro tendo distribuição gratuita pela internet”, conta o jornalista, que, a partir da militância pela causa palestina, desenvolveu uma rede de trabalho com profissionais dos territórios ocupados, produzindo há quatro anos reportagens de forma voluntária, sem objetivos financeiros.

Lucas Siqueira, a partir de sua pesquisa, correu contra o tempo. De 7/10 até o dia 22 de dezembro inseriu dados factuais, contextualizado com os bombardeios à Faixa de Gaza e à Cisjordânia. “Nesse período, vivi Palestina 24 horas por dia, mantendo contato com pessoas em Gaza, de brasileiros que voltavam de lá. A ideia de distribuir esse livro de forma gratuita é uma forma de denunciar o que está acontecendo lá”.

Com sua rede formada, o jornalista, em janeiro de 2023, resolveu conhecer de perto o que acontecia nos territórios ocupados, participando de uma conferência de jornalistas do Crescente Vermelho, conhecendo pessoalmente os amigos de sua rede, principalmente o jornalista palestino Muath Amarneh.

Somos todos Muath e Adham

Muath ganhou notoriedade quando, em 2018, durante um protesto em Surif, cidade da Cisjordânia ocupada, foi baleado enquanto fotografava. O fotojornalista foi alvejado no olho esquerdo por um integrante do exército de ocupação israelense. A imagem do seu rosto coberto de sangue, sendo socorrido por seus amigos jornalistas, percorreu o mundo e provocou vários protestos, notas de repúdio e a campanha “We are all Muath” (Somos todos Muat). Atualmente, Muath Amarneh está preso em uma prisão israelense.

“O Muath se tornou um irmão para mim. Foi preso em 20/10. Ele sofreu espancamentos e está privado de medicações. A situação atual dele é muito grave. O Sindicato dos Jornalistas Palestinos está promovendo uma campanha para que ele seja assistido, mas o governo de Israel recusa a atender os pedidos. Foi por causa de Muath que me envolvi com a causa palestina”, diz, de forma emocionada, Lucas Siqueira, cujo livro tem o prefácio assinado por Muath Amarneh.

Lucas Siqueira firmou amizade com outro jornalista palestino, Adham al Hajjar, que foi baleado na Grande Marcha de Retorno de Gaza, em abril de 2018. Adham usava capacete e colete a prova de balas com as inscrições “PRESS”, mas, mesmo assim, foi alvejado pelos atiradores israelenses.  Siqueira o entrevistou em abril de 2022, contando a história de Adham. O jornalista palestino falou de sua luta para obter tratamento adequado para recuperar os movimentos da perna, que foi destroçada por uma bala expansiva, munição com alto poder de impacto.

Com a atual situação dos bombardeios incessantes a Gaza, há dias Lucas tenta falar com Adham al Hajjar, mas sem sucesso. “Já faz 15 dias que não consigo falar com ele (Adham). Tive notícias de que sua casa foi bombardeada no Norte de Gaza. Por sorte, a família estava em um cômodo que não foi atingido”, comenta.

Por fim, Lucas Siqueira tece críticas ao papel desempenhado pela grande mídia, principalmente a mídia brasileira.

“O papel da mídia internacional e da brasileira é de ser 100% conivente com o discurso sionista. Há, na realidade, uma indústria da desinformação, em que você percebe a utilização de termos técnicos que são usados propositalmente para uma disputa de narrativa, com objetivo de distorcer um diálogo e discurso. Os informes sobre o noticiário da Palestina e do Oriente Médio são apenas replicados, e isso acontece também com mídia independente. Issoocorre também pela pressa em publicar uma determinada notícia. Um exemplo disso é o emprego do termo ‘antissemitismo’. A palavra semita, em sua origem, não se aplica às pessoas europeias de fé religiosa judaica. Ela tem aplicação correta ao designar pessoas de origem árabe e palestina. Então, se convencionou dizer erroneamente que um ataque a um israelense é antissemitismo, não prevalecendo o mesmo para um palestino. Raramente você vai encontrar alguém que escreva isso de forma correta, diante da atual situação”, finaliza.

O livro “Artigo 19 Violação da liberdade de opinião e expressão na Palestina” pode ser baixado neste link. https://www.editoramemo.com/publicacoes/artigo-19-violacao-da-liberdade-de-opiniao-e-expressao-na-palestina/

André Lobão *André Lobão é jornalista, escritor, videomaker e ativista de comunicação comunitária e digital, atualmente profissional de comunicação do Sindicato dos Petroleiros do Rio de Janeiro-RJ.

https://fepal.com.br/opiniao/o-jornocidio-palestino/ ativista de comunicação comunitária e digital, atualmente profissional de comunicação do Sindicato dos Petroleiros do Rio de Janeiro-RJ.

https://fepal.com.br/opiniao/o-jornocidio-palestino/

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Por que a agência palestina para os refugiados, UNRWA, trabalha no interesse de Israel

 (O texto abaixo, publicado em outubro de 2021, no site palestinalivre.org,  é importante para compreender a posição dos gestores da UNRWA contra seus próprios funcionários, e a forma como os EUA manipulam, e jogam com a vida dos refungiados.) Nota do Blog

A UNRWA, a partir de agora (14/07/2021), deve agir sob critérios políticos ditados por Washington em troca do seu financiamento, que incluem a possível revogação de facto do estatuto de refugiado palestiniano. As cláusulas políticas aceites pela agência contradizem o mandato da UNRWA como organismo humanitário internacional e violam os seus princípios de independência e imparcialidade...

Por Daniel Lobato  contacta@infolibre.es  , Twitter @dlobatob

Os EUA e a UNRWA  assinaram um acordo  em 14 de julho pelo qual Washington volta a fornecer dinheiro aos refugiados palestinianos em 2021 e 2022, mas condiciona esta agência da ONU  a trabalhar como contratante para os objetivos dos EUA e, portanto, de Israel . A partir de agora, ele deve agir sob critérios políticos ditados por Washington em troca do seu financiamento, que incluem a possível  revogação de fato  do estatuto de refugiado palestiniano.

As cláusulas políticas aceites pela agência contradizem o mandato da UNRWA como organismo humanitário internacional e violam os seus princípios de independência e imparcialidade, embora sejam repetidamente citadas no acordo. 

O documento é tão destrutivo para os propósitos e a neutralidade com que a agência deve funcionar, que a  UNRWA tentou fazer com que passasse o mais despercebido possível . No seu comunicado de imprensa  , destacou a sua alegria pela retoma do financiamento dos EUA . Devemos procurar no texto da declaração uma breve frase sobre o acordo, afirmando que este “estabelece objetivos e prioridades partilhadas   entre a UNRWA e os EUA, sem explicá-losPara se aprofundar é necessário ler o documento. O Comissário Geral da UNRWA, Philippe Lazzarini, é o signatário do contrato com os EUA, e também não explicou nada sobre o acordo, apesar de alegar a capacidade de alterar o mandato da agência.

A UNRWA estava em  crise financeira  depois que Donald Trump suspendeu as doações à organização em janeiro de 2018. Como resultado, a UNRWA encerrou vários serviços  e demitiu centenas de trabalhadores . Estes  problemas financeiros são constantes  , uma vez que a UNRWA depende intencionalmente da caridade e não dos orçamentos da ONU, ao contrário do ACNUR. Assim, os países doadores têm a capacidade de  extorquir e chantagear os refugiados e a sociedade palestina . Esta chantagem foi exactamente o que aconteceu e por esta razão os EUA são o primeiro doador, e não é coincidência que as tentativas de garantir que a UNRWA tenha orçamentos estáveis ​​tenham falhado.

A decisão de Trump de parar o financiamento foi  uma punição colectiva aos palestinianos  pela sua rejeição do chamado  “Acordo do Século ”, uma proposta elaborada por Netanyahu. O texto dos EUA e de Israel implicava a rendição palestina definitiva,  aceitando os atuais guetos e o apartheid , e renunciando a direitos inalienáveis, como o direito de regresso dos refugiados palestinianos.

Joe Biden anunciou que iria retomar as doações à UNRWA, mas omitiu que iria condicionar o trabalho da agência, algo que foi revelado na  primeira carta que os EUA enviaram à UNRWA em março de 2021 .

UNRWA torna-se contratante de segurança para os EUA e Israel

O acordo assinado pela UNRWA com os EUA  provocou rejeição  por parte da sociedade palestina. BADIL é uma importante organização  que defende os direitos dos refugiados palestinos e tem status consultivo na ONU. Esta organização denuncia que os EUA conseguiram que as leis norte-americanas,  e portanto os interesses israelitas, sejam o quadro de acção da UNRWA . Do BADIL explicam que os EUA conseguiram impor quais os refugiados palestinianos que podem receber os serviços da UNRWA e, portanto, os excluídos revogaram,  de fato,  a sua identidade como refugiados.

As obrigações impostas pelos EUA à UNRWA  são múltiplas . A partir de agora, a UNRWA está proibida de prestar assistência a pessoas ligadas a grupos denominados “terroristas” pelos Estados Unidos e Israel. Ambos designam como terrorista  qualquer indígena palestino que resista à ocupação , ao seu deslocamento forçado ou à expropriação de suas propriedadesA UNRWA não deveria investigar apenas os refugiados; também aos seus trabalhadores, empreiteiros, fornecedores e doadores não estatais semestralmente, incluindo as redes sociais do pessoal da agência. Isto transforma a UNRWA numa  gigantesca agência de espionagem  e contratante de segurança para milhões de pessoas e empresas que tem de monitorizar e reportar periodicamente aos EUA. 

É paradoxal que a UNRWA tenha de investigar os seus doadores não estatais, enquanto o doador EUA e o ocupante Israel são indiciados em processos de crimes de guerra no Tribunal Penal Internacional. Também exige o registo biométrico de todos os refugiados palestinianos, apesar das experiências recentes com refugiados Rohingya e do Afeganistão, com todos os dados biométricos de ONG e dos EUA  nas mãos do regime de Mianmar  e  dos Taliban .

BADIL denuncia que trabalhadores da UNRWA já foram despedidos em aplicação destas medidas à atividade política dos seus funcionários. O Sindicato dos Funcionários da UNRWA rejeitou as condições impostas e a seleção dos seus membros.

Esta proibição de exercício político de descontentamento com Israel viola a legalidade internacional,  mas não se limita às organizações políticas . Numerosas organizações sociais palestinas são definidas como terroristas, por exemplo os Comitês de Trabalho Agrícola, ou os  Comitês de Trabalho de Saúde , com parte da sua equipa na prisão durante meses,  incluindo a hispano-palestina Juani Rishmawi , Juana Ruiz Sánchez.

Até agora, foram os lobbies israelitas disfarçados de ONG, UNWatch e outros, que levaram a cabo esta vigilância massiva sobre os funcionários da UNRWA, elaborando listas negras de trabalhadores e exigindo o sua demissão da ONU. Os professores das escolas da UNRWA sofrem intensa espionagem por parte de Israel, e são denunciados  por defenderem o direito ao retorno dos refugiados  (Resolução 194 da ONU),  o direito  das pessoas à resistência ( Resolução 3070 da ONU ) ou por  afirmarem que os Estados não têm direito intrínseco de existir, especialmente regimes de apartheid .

Agora será a UNRWA quem assumirá esta tarefa de censura, não só dos seus trabalhadores, mas também de adaptação dos livros escolares aos interesses de Israel.

Os EUA e a UE impõem conteúdo pró-Israel às crianças palestinas

O acordo entre os EUA e a UNRWA obriga a agência a “tomar medidas contra conteúdos contrários aos princípios da ONU em materiais educativos”. Este eufemismo significa que a partir de agora a UNRWA deve suprimir  qualquer conteúdo que entre em conflito com a narrativa israelita . Como resultado desta cláusula, a UNRWA já instruiu o seu corpo docente a não nomear o mapa histórico da Palestina, as cidades palestinas invadidas em 1948, a resistência, os prisioneiros, o muro, etc. Trata-se de eliminar qualquer conteúdo nacional palestino e de promover a israelização. Isto é o que já acontece com os palestinos nativos com cidadania israelense: além de sofrerem segregação racista,  o seu currículo anula a sua identidade e história .

Precisamente, a Comissão Orçamental do Parlamento Europeu aprovou há poucos dias  uma alteração que condiciona 23 milhões de dólares à UNRWA,  aludindo ao fato de “discurso de ódio, anti-semitismo e incitamento à violência”. A UE exigirá que a UNRWA promova a “coexistência com Israel” se a agência quiser receber os fundos. Os lobbies israelenses, como o Impact-SE, analisam cuidadosamente os livros didáticos palestinos e também os de outros países árabes. Em seguida, entregam  relatórios sobre o conteúdo escolar palestino  a grupos políticos no Parlamento Europeu, exigindo que termos como “direito de regresso”, “colonização”, “ocupação sionista” ou “limpeza étnica” sejam removidos. Exigem também que revisões históricas, bíblicas ou mitológicas falsificadas de Israel sejam incluídas nos textos palestinos  , e que se reflita que foram os palestinos que “rejeitaram a paz” em numerosas ocasiões.

Os EUA e a UE conseguiram impor à UNRWA a mesma coisa que aplicaram às organizações civis palestinianas durante décadas:  condicionar politicamente a ajuda humanitária  e o financiamento internacional à sociedade palestina. Qualquer organização palestina que utilize termos como colonização, apartheid, boicote ou direito de regresso dos refugiados  está excluída do recebimento de fundos oficiais .

BADIL salienta que o que está a acontecer é o que afirmou o combatente sul-africano anti-apartheid,  Steve Biko : “A arma mais poderosa nas mãos do opressor é a mente dos oprimidos”.

O objetivo dos EUA e da UE é permitir que Israel ignore o regresso dos refugiados e acabe com a UNRWA

Deve ser lembrado que a existência de milhões de refugiados palestinianos décadas após a sua desapropriação e expulsão é uma anomalia completa, um produto do desrespeito permanente de Israel pela legalidade e  pelo mandato de que estes refugiados regressem e sejam compensados . Mas a impunidade que o Ocidente concede ao regime israelita continua a permitir que os palestinos sejam o maior e mais antigo grupo de refugiados do planeta, enquanto  noutros conflitos  é promovido o regresso ou regresso forçado de refugiados. O Ocidente procura que Israel mantenha  a supremacia demográfica racista da sua sociedade colonizadora  sobre os palestinos indígenas, impedindo o regresso dos nativos que foram despossuídos e expulsos. Segundo  dados do BADIL , quase 9 milhões dos 13 milhões de palestinos no mundo (66%) estão deslocados à força, embora o mandato da UNRWA só acolha 5,5 milhões.

Em vez de contribuir para a promoção dos direitos palestinos reconhecidos no direito internacional, a onegeização da sociedade palestina colonizada procura enfraquecê-la e enterrar as suas reivindicações,  especialmente o direito ao regresso . A aplicação precisa da lei contra Israel com o regresso dos refugiados tornaria a UNRWA desnecessária. Pelo contrário,  Israel e os seus aliados procuram destruir a agência  e fazer desaparecer também o direito de regresso dos palestinos. Entretanto, para uma camada da burocracia da ONU, a agência tornou-se um modo de vida em si que deveria ser perpetuado à parte dos palestinos e dos seus direitos.

Num paradigma pós-verdade, o acordo entre os EUA e a UNRWA apela repetidamente à neutralidade da agência  para conseguir o oposto : transformá-la num contratante de segurança para os EUA e Israel. Nesta distorção, os palestinianos são forçados a suprimir conteúdos educativos “contrários aos princípios da ONU” que na realidade são a terminologia, os direitos e a legalidade internacional que protegem os palestinianos e são desconsiderados por Israel.

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Daniel Lobato  é um activista solidário com a Palestina.

Como Gaza está impactando o impasse das Grandes Potências

 


Embora a multipolaridade liderada pela China tenha acelerado o declínio da era americana, a guerra em Gaza poderá acabar com ele completamente.

O que está a acontecer hoje na Ásia Ocidental  a guerra de Gaza e a sua expansão regional  não pode ser visto separadamente das transformações internacionais que ganharam impulso ao longo dos últimos anos. Hoje, a transição para a multipolaridade é o factor subjacente que molda as decisões e políticas da maioria dos países, especialmente as das grandes potências. 

O momento do devastador ataque militar de Israel a Gaza coincide com a crescente atenção dos EUA na sua grande competição de poder por Washington. Este conflito tem um significado geopolítico muito mais amplo para além da Ásia Ocidental. Neste contexto, os EUA assumiram, e continuarão a desempenhar, um papel fundamental em Gaza e nos seus arredores, ao contrário dos seus poderosos pares na China e na Rússia. 

De acordo com estatísticas publicadas pela Sociedade Chinesa de Estudos dos Direitos Humanos , os EUA iniciaram 201 dos 248 conflitos armados que ocorreram desde o final da Segunda Guerra Mundial, envolvendo-se frequentemente nestas guerras através de alianças e/ou representantes liderados pelos EUA.
 

As guerras mais proeminentes lideradas ou apoiadas pelos Estados Unidos na Ásia Ocidental desde 1990

Durante décadas, Washington liderou estes conflitos formando, depois liderando e orientando, de forma muito competente, alianças amplas para alcançar os seus objectivos políticos e militares. Mas essa capacidade mudou notavelmente em Dezembro de 2023, sinalizando um declínio acentuado nesta capacidade. 

Em resposta ao bloqueio das forças armadas do Iêmen, alinhadas com Ansarallah, no Mar Vermelho, aos navios ligados a Israel, o Departamento de Defesa dos EUA anunciou a formação da " Operação Guardião da Prosperidade ... para defender o princípio fundamental da liberdade de navegação" nessas águas, inicialmente consistindo numa coligação de dez países, a maioria deles parceiros insignificantes.

Proteger Israel ou manter o domínio marítimo?

A coligação revelou-se instável desde o início, com apenas os EUA e a Grã-Bretanha ativamente envolvidos em ataques militares no Iêmen. A relutância dos principais países europeus , França, Espanha e Itália, em aderirem à aliança naval indicou um ceticismo crescente entre os parceiros tradicionais dos EUA - tanto ocidentais como da Asia ocidentais - sobre o compromisso e a capacidade de Washington para defender os seus aliados de qualquer forma impactante.

Curiosamente, mais de oito outros países alegadamente aderiram à coligação, mas exigiram o anonimato, dadas as potenciais consequências políticas da associação com Washington e Tel Aviv.

Crucialmente, o objectivo declarado do Pentágono de garantir a navegação no Mar Vermelho não se alinha com a ameaça real apresentada, revelando segundas intenções por detrás das ações dos EUA. Os iemenitas confirmaram repetidamente que pretendem apenas inibir a passagem de navios de propriedade ou destinados a Israel – e que todos os outros navios são livres de passar.

Em suma, a coligação liderada pelos EUA/Reino Unido está a atuar como um braço naval das forças militares israelitas, procurando especificamente garantir o acesso desimpedido aos navios que se dirigem para os portos israelitas através do Estreito de Bab al-Mandab. Essa não é uma posição que muitos outros estados apoiarão se quiserem manter a liberdade de transporte para os seus próprios navios.

Em última análise, a demonstração de força americana nestas vias navegáveis ​​procura consolidar o domínio naval dos EUA, que o Iêmen, devastado pela guerra, o país mais pobre da Ásia Ocidental, contestou. 

Conforme descrito na Estratégia de Segurança Nacional para 2022 :

Os EUA “não permitirão que potências estrangeiras ou regionais ponham em risco a liberdade de navegação através das vias navegáveis ​​do Médio Oriente (Ásia Ocidental), incluindo o Estreito de Ormuz e o Bab al Mandab, nem tolerarão esforços de qualquer país para dominar outro – ou a região – através de acumulações militares, incursões ou ameaças.” 

De acordo com relatos dos meios de comunicação social, na sequência dos ataques aéreos massivos dos EUA contra alvos iraquianos, em 23 de Janeiro, as facções da resistência iraquiana irão agora também seguir o exemplo do Iêmen, implementando um bloqueio aos portos israelitas no Mar Mediterrâneo. 

Os acontecimentos actuais estão a fugir ao controlo de Washington, à medida que os observadores questionam cada vez mais a utilidade e a competência da liderança naval dos EUA nas importantes vias navegáveis ​​do mundo. De igual modo, reconhece-se que surgiram outras forças e Estados formidáveis, desafiando o controlo dos EUA sobre estreitos globais importantes. Nas palavras do político e escritor britânico Walter Raleigh: “Quem governa os mares governa o mundo”. Sob a supervisão de Sanaa, os EUA já não podem reivindicar o domínio sobre o Mar Vermelho ou mesmo sobre as vias navegáveis ​​adjacentes. 

Grande competição de poder em meio à guerra de Gaza 

O cenário atual na Ásia Ocidental, particularmente após as inundações de Al-Aqsa e a guerra em Gaza que se seguiu, coincide com uma mudança no foco de Washington no sentido da concorrência com a China e da sua guerra por procuração contra a Rússia na Ucrânia. Tal como descrito na avaliação anual de ameaças da comunidade de inteligência dos EUA no ano passado, esta transição já afetou objectivos estratégicos, levando a um declínio acentuado no apoio ocidental, especialmente dos EUA, à Ucrânia. A administração Biden enfrentou desafios para garantir a aprovação do Congresso para um novo pacote de ajuda a Kiev, que competia directamente por dólares com a campanha militar de Tel Aviv em Gaza.
 

Ajuda paga à Ucrânia em 2023 sob poderes de retirada presidencial

Apesar das garantias dos líderes ocidentais durante as visitas à Ucrânia em Outubro, as suas declarações foram feitas sem apoio material tangível, deixando o Presidente Volodymyr Zelensky na proverbial poeira. De forma bastante inesperada, a China emergiu como um potencial pacificador neste conflito europeu, com Kiev a solicitar abertamente o envolvimento de Pequim nas conversações de mediação, e os próprios EUA abertos à mediação chinesa para mitigar a escalada na Ásia Ocidental.

Os chineses estão bem conscientes de que não existem saídas simples e que salvem as aparências para os EUA da guerra de Gaza que têm defendido e que a metamorfose do conflito num conflito regional atola os EUA mais profundamente na Ásia Ocidental - e longe da Ásia-Pacífico. 

Embora a China procure aumentar a sua presença na Ásia Ocidental, tem muito cuidado para não se atolar nas muitas questões da região. Mas o pedido de Washington para que Pequim use a sua influência para afastar o Irã da escalada do conflito deixa claro que os EUA já não são “a maior potência” na região.

Por que Israel se opõe à multipolaridade

Após a Operação Al-Aqsa Flood, o apoio financeiro e militar dos EUA a Israel atingiu uma fase crítica, apresentando duas opções para Washington. A primeira envolve a imposição de algum controlo sobre as ações israelitas, dado que o momento da guerra tem sido desfavorável aos interesses estratégicos dos EUA, particularmente num ano eleitoral crítico. A segunda opção, preferida pela elite de Washington, é continuar o seu apoio inabalável a Tel Aviv, mesmo correndo o risco de prejudicar a sua imagem global. 

A indignação global sustentada relativamente à guerra em Gaza, juntamente com o caso histórico de genocídio apresentado contra Israel no Tribunal Internacional de Justiça (CIJ), mostra que a capacidade de Washington de dar cobertura a Israel está a diminuir rapidamente. Mais uma vez, isto reflete a mudança global no equilíbrio de poder em direção à multipolaridade, que é marcada pelo declínio generalizado da influência americana. 

Mas o apoio dos EUA ao genocídio de Gaza também teve repercussões internas dramáticas. As sondagens mostram uma grande mudança nas atitudes dos jovens americanos, especialmente dos jovens universitários, que constituirão as fileiras dos futuros líderes da América. 

Uma sondagem Harvard-Harris publicada em 17 de Janeiro revela que 46 por cento dos entrevistados com idades compreendidas entre os 18 e os 24 anos acreditam que as acções do Hamas em 7 de Outubro podem ser justificadas devido à injustiça a que os palestinianos estão sujeitos. A mesma sondagem mostra que 43 por cento do mesmo grupo apoia o Hamas nesta guerra e que 57 por cento acreditam que Israel está a levar a cabo massacres em Gaza. O resultado mais surpreendente de todos, no entanto, tem de ser o de Dezembro (realizado pelos mesmos institutos de pesquisa), em que 51 por cento dos jovens americanos acreditam que uma solução final para o conflito israelo-palestiniano é o fim de Israel e a entrega a Israel. Hamas e os palestinos.

Embora Israel continue a ser um interesse direto dos EUA na Ásia Ocidental, o compromisso de Washington com a segurança de Tel Aviv já se tornou um fardo crescente e cada vez mais difícil de justificar. À medida que o Eixo da Resistência da região expande a sua batalha com Israel em novas e múltiplas linhas de frente, os EUA terão de reafetar recursos cada vez maiores e concentrar-se em igualar os seus rivais internacionais em geografias mais distantes. 

A Ucrânia foi um teste em comparação com esta guerra em Gaza e com o impacto imenso e direto que está a causar às alianças dos EUA, à política interna e à imagem americana a nível global. Para Israel, isto representa uma crise existencial além da medida, uma vez que Washington é forçado a competir com outras grandes potências, nenhuma das quais é ideologicamente motivada a apoiar o sionismo como parte das suas políticas externas.

https://thecradle.co/articles/how-gaza-is-impacting-the-great-power-standoff

Porque não é possivel deter o genocídio?

 Craig Mokiber, diretor do escritório de Nova Iorque do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, demitiu-se em 31 de outubro, afirmando que “mais uma vez estamos a ver um genocídio a desenrolar-se diante dos nossos olhos e a organização que servimos parece impotente para o impedir”

Ele observou que a ONU não conseguiu evitar genocídios anteriores contra os tutsis no Ruanda, os muçulmanos na Bósnia, os yazidis no Curdistão iraquiano e os rohingya em Myanmar e escreveu: “Alto Comissário, estamos a falhar novamente.

“O atual massacre em massa do povo palestino, enraizado numa ideologia etno-nacionalista colonial, na continuação de décadas de perseguição e purga sistemática, baseada inteiramente no seu estatuto de árabes… não deixa espaço para dúvidas.”

Mokhiber acrescentou: “Este é um caso clássico de genocídio” e disse que os EUA, o Reino Unido e grande parte da Europa não só estavam a “recusar-se a cumprir as suas obrigações do tratado” ao abrigo das Convenções de Genebra, mas também estavam a armar o ataque de Israel e a fornecer-lhe cobertura política e diplomática. .

“Devemos apoiar o estabelecimento de um Estado secular único e democrático em toda a Palestina histórica, com direitos iguais para cristãos, muçulmanos e judeus”, escreveu ele, acrescentando: “e, portanto, o desmantelamento dos colonos profundamente racistas. projeto colonial e o fim do apartheid em todo o país.”

Mokhiber, um advogado especializado em direito internacional dos direitos humanos, trabalhava para a ONU desde 1992. Liderou o trabalho do alto comissário na elaboração de uma abordagem ao desenvolvimento baseada nos direitos humanos e atuou como conselheiro sênior de direitos humanos na Palestina, no Afeganistão e Sudão. Na década de 1990 ele morou em Gaza.

A indiferença ao genocídio, contudo, é a norma e não a exceção. A comunidade internacional pouco fez para travar o genocídio arménio, o Holocausto e os genocídios no Camboja, no Ruanda e na Bósnia. Está a observar passivamente centenas de palestinianos serem mortos e feridos todos os dias, enquanto Israel impede a entrada de alimentos, medicamentos, combustível e outros fornecimentos básicos na Faixa de Gaza, onde 80 por cento dos cerca de 2,3 milhões de habitantes estão agora sem abrigo.

As poucas vozes que denunciam o genocídio pagam com as suas carreiras. Josh Paul, que trabalhou no Gabinete de Assuntos Político-Militar do Departamento de Estado durante mais de 11 anos, demitiu-se “devido a um desacordo político relativo à nossa contínua assistência letal a Israel”. Tariq Habash, um dos principais conselheiros do Departamento de Educação, demitiu-se em Janeiro, dizendo que já não poderia servir uma administração que “colocou milhões de vidas inocentes em perigo”. Mas, apesar das cartas de protesto dentro das agências governamentais, incluindo o Departamento de Estado e a AID, não há êxodo em massa.

Por que condenamos o genocídio como o crime dos crimes, damos aula após aula sobre o Holocausto e, ainda assim, nada fazemos para detê-lo quando ele ocorre? Porque é que há tão poucas pessoas dispostas a levantar-se e apelar às instituições e aos governos pelo seu silêncio ou cumplicidade? Não aprendemos nada com a história? Juntando-se a mim para discutir a indiferença histórica ao genocídio e ao que está acontecendo em Gaza está Craig Mokiber.

https://chrishedges.substack.com/p/chris-hedges-with-craig-mokhiber