sexta-feira, 29 de junho de 2018

Como a mídia ocidental justifica o genocídio no Iêmen

Por  Finian Cunningham - 26/06/2018
  
(Traduzido pelo Blog)
Enquanto as Nações Unidas advertem que milhões de civis podem morrer de violência e fome devido ao atual cerco da cidade portuária iemenita de Hudeid, não há outra maneira de descrever o que está acontecendo, exceto como "genocídio".
A guerra de mais de três anos no Iêmen travada por uma coalizão saudita apoiada pelo Ocidente  é indiscutivelmente genocida desde o início, são oito milhões de pessoas  à beira da fome devido ao bloqueio de longa data que sofre o estado árabe, bem como por ataques aéreos indiscriminados.
Mas a mais recente ofensiva no Mar Vermelho, na cidade de Hudeid, no Mar Vermelho, ameaça transformar a maior catástrofe humanitária do mundo em extermínio em massa.
Hudeid é o ponto de entrada para 90% do total da ajuda alimentar e assistência médica ao Iêmen. Se o porto da cidade deixar de funcionar por causa de uma ofensiva militar - como alerta as agências da ONU -, então uma população de mais de 20 milhões será levada à beira da morte.
A coalizão saudita, que inclui as forças do Emirado e mercenários estrangeiros, bem como as forças do regime anterior (que a mídia ocidental falsamente chama de "forças do governo"), é apoiada pelos Estados Unidos, Grã-Bretanha e França. Esta coalizão diz que a tomada da cidade acelerará a derrota dos rebeldes Houthis. Para isso, estão usando o cruzamento das linhas de ajuda alimentar e humanitária como uma forma de guerra contra a população civil, isso é sem dúvida, um crime de guerra. O que é absolutamente imperdoável.
Na semana passada, uma sessão urgente no Conselho de Segurança da ONU exigiu que este porto permanecesse aberto. No entanto, a sessão não exigiu a suspensão da ofensiva do saudita e dos Emirado contra Hudaid , que é o segundo  maior reduto  dos Houthis, depois da capital  Sana. Uma população de 600 mil pessoas dentro de cidade portuária já estão expostas aos intensos combates que ocorrem,  incluindo ataques aéreos e bombardeios marítimos, antes mesmo de ser interrompido o fornecimento de alimentos, água e remédios.
Como a reunião do  Conselho de Segurança foi a porta fechadas, os relatórios da mídia não indicaram quais membros do Conselho votaram contra o pedido sueco de término imediato das hostilidades. No entanto, tendo em conta que três membros permanentes do Conselho, os Estados Unidos, Inglaterra e França,  apoiam a ofensiva militar liderada pela Arábia Saudita contra a cidade portuária , pode-se supor que esses países bloquearam o apelo a um cessar-fogo.
Enquanto o horror  se estende, a mídia ocidental se esmera  para branquear  o papel criminoso dos Estados Unidos, da Inglaterra e da França no apoio a ofensiva. A mídia ocidental se concentra na crise humanitária da população de Hudeid e da população ienemita. Mas tem o cuidado de omitir o contexto real e mais amplo e, obviamente, a conclusão de que o cerco de Hudeid não seria possível sem o apoio militar do Ocidente. Se o público ocidental fosse devidamente informado, eles se deparariam com uma forte oposição que revelaria a relação entre os governos ocidentais e os meios de comunicação.
O que é notório na mídia ocidental é a utilização do termo abrangente usado quando se fala sobre os rebeldes Houthis. Invariavelmente, os rebeldes Houthis são descritos como aqueles  "apoiados pelo Irã". Este rótulo é usado para implicitamente "justificar" o cerco saudita e dos Emirado à cidade Hudeid, "porque" é dito que a operação é parte da "guerra por procuração contra o Irã". A BBC, a France 24, a CNN, a Deutsche Welle, o New York Times e o Washington Post estão entre os meios de comunicação que comumente praticam essa desinformação sobre o Iêmen.
Tanto o Irã quanto os Houthis negaram qualquer relação militar recíproca entre eles. É verdade que o Irã apoia politicamente e diplomaticamente os Houthis e toda a população iemenita que sofre com a guerra. Os houthianos compartilham a fé xiita comum com o Irã, mas isso está longe de qualquer envolvimento militar. Não há evidências do envolvimento do Irã no Iêmen. A base para esse tipo de  afirmação  depende exclusivamente  das declarações da Arábia Saudita e dos Emirados divulgadas sem nenhuma crítica. Até mesmo o governo dos EUA evitou fazer acusações diretas contra o Irã neste tema do  apoio militar aos Houthis. O silêncio de Washington é um claro reconhecimento de que esta acusação já está esgotada e não tem força. Além disso, como poderia um país que foi submetido a um bloqueio ilegal da Arábia Saudita por terra, mar e vias aéreas receber armas  fornecidas pelo Irã?
Em contraste, enquanto os meios de comunicação ocidentais costumam descrever os rebeldes  Houthis como "apoiados pelo Irã", omitem descaradamente os termos "apoiados pelos Estados Unidos" ou "apoiados pelos britânicos e os franceses", ao se referirem às forças sauditas e dos Emirados que estão bombardeando o povo do Iêmen há três anos. Ao contrário de acusações desnecessárias sobre as ligações iranianas com Houthis, a conexão militar ocidental foi verificada e confirmada pelas grandes exportações de armas e pelo fornecimento de combustível e logística no apoio aos esforços de guerra da Arábia Saudita e dos Emirados contra o Iêmen..  
No domingo passado, o New York Times lamentou sobre as condições infernais no Iêmen, classificando as de "guerra muito complexa", como se a guerra fosse um mistério insondável. Por que o New York Times não publica editorias corajosos clamando abertamente pelo fim da cumplicidade dos EUA na guerra contra o Iêmen? Ou talvez isso seja muito , de fato, muito "complexo" para o editorial do Times?
O Washington Post levantou uma falsa preocupação, na semana passada, declarando: "A crise humanitária mais grave no mundo corre o risco de piorar ainda mais. A ofensiva liderada pelos Emirados Árabes Unidos (e da Arábia) está em curso contra a cidade portuária de Hudeid controlada por rebeldes Houthis, apoiados pelo Irã".
Neste relatório,  o Post não mencionou o fato de que os ataques aéreos realizados por forças sauditas e  dos Emirados são realizados por  caças F-15 dos EUA, por Britsh Typhoons e aviões franceses Dassault. Incoerentemente, o Post cita declarações de autoridades dos EUA que afirmam que suas forças não estão "diretamente envolvidas" na ofensiva na cidade portuária. Como isso é credível  quando  os ataques aéreos são conduzidos por eles diariamente? O Washington Post nem sequer tenta buscar mais informações a respeito.
No relatório da semana passada,  a BBC, que também expressa uma falsa preocupação e pesar pela "crise humanitária" em Hudeid continua normalmente, embora sem provas, marcando  os rebeldes Houthis como "apoiados pelo Irã". Mas, inacreditavelmente, ao longo do artigo (pelo menos em edições anteriores), não havia uma única menção do fato verificável de que a Arábia Saudita e o Emirado receberam bilhões de dólares em armas britânicas, americanas e francesa.
No último parágrafo de suas edições anteriores, a BBC editorializa: "Em março de 2015, a Arábia Saudita e outros  países árabes, de maioria sunita, lançaram uma campanha militar para restaurar o governo   do presidente Hadi  (exilado) depois da ascensão do grupo Houthis visto como um proxy xiita iraniano ".
Preste atenção à implicação embaraçosa e pouco convincente da BBC sobre o Irã. Isto é uma estupenda distorção do conflito no Iêmen pela emissora estatal britânica que, surpreendentemente, ou talvez devesse ser audaciosamente, exclui completamente qualquer referência ao fato dos governos ocidentais estarem  alimentando a guerra genocida no Iêmen.
No final de 2014, fantoche dos EUA e dos saudita, o auto-proclamado "presidente" Mansour Hadi foi derrubado por uma rebelião liderada pelos  Houthis e outros rebeldes. A rebelião iemenita incluiu os shiitas e o sunitas. A apresentação do Irã como um patrocinador dos xiitas é uma distorção repulsiva que os sauditas e seus patrocinadores ocidentais têm usado para justificar o ataque sobre o Iêmen, a fim de repor o seu presidente fantoche, que vive no exílio na capital saudita, Riad. Em suma, a mídia está  ocultando uma guerra criminosa com mentiras e manipulações.
Na realidade, a guerra do Iêmen é produto das potências ocidentais e dos regimes déspotas do mundo árabe, que tentam reverter o processo de  revolução popular que aspirava construir um governo consideravelmente mais democrático, no país mais pobre da região árabe, superando décadas de tutela  do ocidente e da Arábia Saudita em regime de   cleptocracia.

Por mais de três anos, as forças sauditas e dos Emirados, apoiadas pelo Ocidente com aviões de guerra ocidentais, bombas, mísseis, helicópteros de ataque, navios e reabastecimento aéreo, além de direcionar a logística, empreenderam uma campanha de bombardeio ininterrupto contra civis iemenitas. Nada ficou de fora: hospitais, escolas, mercados, mesquitas, funerais, salões de festas, casas de família, fazendas, estações de tratamento de água e serviços de energia, toda  infraestrutura foi impiedosamente destruída. Até cemitérios foram bombardeados.
Mesmo durante o mês sagrado muçulmano do Ramadã, a coalizão liderada pela Arábia Saudita - a suposta guardiã das duas mesquitas sagradas de Meca e Medina - continuou a massacrar civis inocentes do ar. 
Em outro lugar da região, os políticos ocidentais e a mídia corporativa lançaram protestos histéricos contra o governo sírio e seus aliados russos enquanto estes libertavam  as cidades dos terroristas apoiados pelo Ocidente, acusando a Síria e Rússia por "crimes de guerra" e "uso desumano da força". Nenhuma das campanhas hiperbólicas da mídia ocidental relacionadas à Síria jamais foi comprovada. Lembre-se de Allepo? Ghouta Oriental? O povo sírio está voltando com prazer para reconstruir suas vidas em paz sob a proteção do governo sírio depois que terroristas ocidentais foram expulsos. As alegações da mídia ocidental sobre a Síria revelaram-se mentiras ultrajantes, que foram enterradas às pressas pelos mesmos meios de comunicação como se nunca houvessem sido proferidas. 
De fato, há em andamento uma guerra genocida contra o povo do Iêmen que é totalmente apoiada pelos governos ocidentais. A barbárie mais recente é o cerco a cidade portuária de Hudeid, cujo objetivo  insano e assassino é de,  finalmente, submeter toda população faminta aos interesses do Ocidente , da Arábia Saudita e dos Emirados. Este é um  crime  de padrão Nuremberg.
Sem exageros, os meios de comunicação ocidentais funcionam como o Ministério de Propaganda  de Goebbels - por excelência  - cuja tarefa é "branquear" os genocídios cometidos por seus governos. As incríveis mentiras que transmitem e as omissões dissimuladas sobre o Iêmen são mais uma das razões pelas quais a mídia ocidental perderam qualquer vestígio de credibilidade. Eles estão servindo, como no Vietnã,no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, na Síria e em muitos outros casos, como cúmplices dos crimes de guerra épicos contra o Iêmen.
Postado do:http://epogledi.com/bs/vijesti/1026/kako-zapadni-mediji-pravdaju-genocid-u-jemenu/

terça-feira, 26 de junho de 2018

Curdos perderam a chance de decidir o próprio destino: Só Damasco pode salvar os curdos.







 
por Elijah J. Magnier
23/6/2018, Elijah J Magnier, Blog
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
 
 
A decisão de Donald Trump de cair fora da Síria “muito rapidamente” e de entregar a cidade de Manbij à Turquia caiu como um raio sobre os curdos sírios reunidos na parte norte do país. Esses curdos, que operam diariamente como escudo humano para proteger as forças dos EUA, foram deliberadamente manipulados pelo establishment dos EUA para garantir cobertura e proteção às forças norte-americanas de ocupação no nordeste do Levante. Agora, Trump parece prestes a fritar os curdos, de um dia para o outro. Não satisfeito com isso, Trump está “leiloando” os curdos, apostando para ver que país árabe ocupará a área que os curdos controlam e ganhará o território no qual estão atualmente os acampamentos curdos.
 
Que opções restam aos curdos?

Bem claramente, nada preocupa menos o presidente dos EUA que o destino dos curdos. Trump está pronto para abandoná-los, apesar de saber que não há lugar para onde os curdos possam ir, nem país aos quais possam pedir proteção. Os curdos perderam a confiança do governo de Damasco por causa de suas escolhas políticas e militares pouco ponderadas – e evidentemente são caçados pela Turquia, que considera todos os curdos na Síria como membros das Unidades de Proteção do Povo Curdo [cur. YPG], grupo coligado a terroristas, pelos padrões de Ankara.

Os “mitos” que cercam os curdos (“são os melhores combatentes contra o 'Estado Islâmico' (ISIS), e/ou “são os melhores aliados dos EUA”) são tolices e nada têm a ver com a realidade. É retórica brotada principalmente dos anos 90s, quando os EUA usaram o Curdistão para garantir um ponto de apoio no Iraque durante a era Saddam Hussein. De fato, os EUA viram nos curdos uma ponte para o Oriente Médio, que lhes permitiu fixar naquela área uma fortaleza militar e de inteligência para os próprios norte-americanos e seus aliados israelenses. Com a guerra que impuseram à Síria, os EUA plantaram-se na área de al-Hasaka, no Curdistão sírio, na esperança de dividirem a Mesopotâmia e o Levante. Mais importante, os curdos no Iraque e na Síria não têm problemas para declarar os fortes laços que os ligam a Israel, apesar da animosidade contra Israel nos dois estados onde vivem: Iraque e Síria.

O Exército Árabe Sírio e seus aliados combateram contra o ISIS em todo o território sírio, perdendo dezenas de milhares de oficiais e soldados. E no Iraque, as forças de segurança iraquianas combateram contra o ISIS em toda a geografia do Iraque onde o ISIS estava presente e perderam milhares de oficiais e soldados (só o grupo Hashd al-Sha’bi perdeu mais de 11 mil militantes).

Mas o investimento e a perda de vidas curdas foram consideravelmente menores. No Iraque, combatendo contra o ISISna área curda ao norte, os curdos perderam cerca de 2.000 militantes. E na Síria, onde os curdos combateram contra o ISIS, as perdas curdas são da ordem de centenas de militantes.
 
 
 
Os EUA apostaram num sonho curdo: curdos sírios e curdos iraquianos queriam estabelecer um Estado. Washington alimentou esse sonho, em nome da necessidade de contar com forças locais como 'representantes' locais dos EUA para estabelecer bases em áreas onde o Irã tem seus centros de influência (no Iraque e na Síria). O plano curdo falhou no Iraque por efeito da firme determinação do governo central iraquiano de impedir que o país fosse dividido. E na Síria, o plano nunca teve e continua sem ter qualquer chance de sucesso, porque Turquia, Irã, Iraque e Síria têm suas próprias razões para impedir tanto um estado curdo como qualquer tipo de ocupação pelos EUA na parte norte do Levante.

Ninguém acredita que os EUA saiam sem arrancar alguma coisa em troca da retirada ou preço ainda mais pesado para o caso de lá permanecerem. Trump já retrocedeu da decisão de retirar-se da Síria “muito rapidamente”, sem apresentar qualquer cronograma específico para continuar onde está. Depois pediu que outros países substituíssem os norte-americanos, sem levar em conta a opinião dos curdos e sem lhes dar qualquer atenção. Os curdos, verdade seja dita, são a menor das preocupações de Trump: são gastos pelos quais ele não tem qualquer interesse. Os norte-americanos, de fato, não investiram dinheiro algum, nem na reconstrução da cidade de Raqqah que eles destruíram para esvaziá-la e poder usá-la para realocar o ISIS.

Seja qual for a decisão (quer EUA fiquem, quer saiam da Síria), os curdos sírios perderam a chance de decidir o próprio destino, em grande medida por causa das incontáveis vezes que optaram por continuar escondidos por baixo das saias dos EUA.

No enclave de Afrin no noroeste da Síria, a administração curda recusou-se a devolver a área ao controle do governo sírio. Os curdos decidiram lutar contra seu mais feroz inimigo, a Turquia, durante dois meses, tempo em que perderam toda a área e criaram centenas de milhares de refugiados que fugiram para al-Hasaka e Deir-Ezzour. O governo de Afrin supunha que o mundo correria a lhes garantir apoio e impedir a ação militar dos turcos: foi o maior dos vários grandes erros que os curdos cometeram. 

Na verdade, só o presidente Bashar al-Assad enviou ajuda: 900 homens das Forças de Defesa Nacional para ajudar na resistência em Afrin, mas não conseguiu convencer o governo local a permitir que o Exército Árabe Sírio assumisse o controle do enclave antes que fosse tarde demais. (Porque os EUA preferiam ter no controle de Afrin os soldados de Ankara – inimigos que os curdos odeiam mais que quaisquer outros –, que Damasco.)

Os curdos parecem ainda não ter compreendido que já não são o “filho pródigo” do ocidente. Escolheram esquecer o erro que os curdos iraquianos cometeram ao decidir ir em frente com seu referendum, quando fracassaram tão espetacularmente, sem obter um estado independente. E os EUA estão provavelmente felizes de ver mais e mais curdos de Afrin fugindo em bando para al-Hasaka, enchendo a região com mais e mais 'agentes representantes' dos EUA, favorecendo os objetivos de Washington no Oriente Médio.

Sabe-se que os curdos perderam centenas de militantes na luta contra o ISIS para recuperar Manbij, Raqqah e outras cidades em al-Hasaka e Deir-ezzour. Lutaram para apoiar a ocupação do nordeste da Síria pelos EUA, dando a Washington um pretexto para permanecer em territórios da Síria, alegando que a presença norte-americana teria a ver com a “guerra ao terror”. Não só os EUA não intervieram em Afrin, como, ainda pior, Washington ordenou que as forças do YPG curdo deixassem Manbij, como desejava a Turquia, aliada dos EUA na OTAN.
 
O ministro de Relações Exteriores da Turquia Mevlut Cavusoglu disse, depois de se reunir com seu contraparte norte-americano Mike Pompeo, que “os EUA e a Turquia começarão a controlar a cidade de Manbij”. Tribos árabes locais al-Bubna, al-Baqqarah e al-Tayy emitiram comunicados dando boas vindas “às forças turcas em Manbij que afinal porão fim à ocupação da cidade por forças do PYD e PKK”.

Claramente, os curdos, consentiram livremente que o establishment dos EUA os manipulasse à vontade, sempre esperando recolher as migalhas deixadas pelas forças norte-americanas e, talvez, concretizar seu sonho de independência. Esse sonho hoje parece mais distante do que nunca, de se realizar, pelo menos nas próximas décadas.

Os curdos foram realmente surpreendidos com a declaração de Donald Trump sobre uma retirada rápida da Síria. Deram-se conta, de repente, de que estavam sendo descartados, sem mais nem menos, de um dia para o outro. É difícil para os curdos ver o establishment dos EUA lhes dar as costas e agir na direção exclusiva de seus próprios interesses nacionais, sem qualquer consideração ao que possa acontecer depois que se forem, ignorando completamente os sacrifícios que os curdos fizeram para ajudar os EUA a alcançar seus objetivos na Síria.

Quando Trump concordou com manter as forças dos EUA na Síria por um pouco mais, a decisão foi como uma injeção de temporária – mas falsa – esperança para os curdos, que viram o destino adiado. Mas por quanto tempo? Só até que os EUA evacuem todas as suas forças ou sejam expulsos de lá sob o fogo da “Resistência Síria” que começa a ganhar músculo nas áreas sírias ocupadas pelos EUA.

A resistência recém anunciada parece reunir tribos locais, especialmente “Bakkara” e “al-Assasneh”, dentre outros grupos locais prontos a dar combate às forças dos EUA – um movimento que faz lembrar o modo como começou a insurgência contra as forças dos EUA em Bagdá, em 2003.

O que os sírios curdos com certeza não veem ou talvez nem comecem a perceber é que Trump não mudará uma vírgula nos seus planos para protegê-los nem porá sua força aérea à disposição dos curdos para transportá-los aos EUA quando chegar a hora de deixarem a Síria. O resultado é fácil de prever: quando a guerra terminar, ninguém precisará de 'agentes locais' nem quererá saber deles. Sem guerra, os 'agentes locais' de forças estrangeiras tornam-se carga pesada demais.




Além do mais, os EUA não têm qualquer intenção de erradicar o ISIS – a única justificativa verossímil (digamos) para a presença de norte-americanos na Síria. O ISIS é o pretexto para que Washington mantenha soldados no Levante. Também auxilia nos objetivos dos EUA, quando seus militantes atacam a única estrada entre Síria e Iraque, a albu Kamal – estrada al Qaem. E ainda dá indicações – embora fracas – de que a Síria continua instável.

Os EUA não permitirão que a Turquia saia, sabendo que Rússia e Irã esperam de braços abertos por Ankara. Para mantê-la ao seu lado, Washington ofereceu à Turquia numa bandeja de prata o controle curdo de Manbij. E os EUA sabem bem que a Turquia jamais aceitará um estado curdo sobre sua fronteira com a Síria. Tudo isso considerado, é simples questão de tempo até que os curdos deem-se conta de que foram vendidos, e que o destino deles está selado.

Num dado momento, o governo central em Damasco considerou traidores os curdos. E eles continuarão a ser vistos como tal, a menos que parem de agir como escudo humano para proteger os EUA. O presidente Assad abriu a porta para negociações diretas e os curdos disseram-se “prontos para negociar”. O preço que os curdos têm de pagar não é complicado: têm de parar de garantir proteção às forças ocupantes (EUA, França e Grã-Bretanha) no norte da Síria.

Os curdos abriram a porta aos turcos que por ali invadiram território sírio para ocupar Afrin, em vez de se aproximarem do estado que os recebeu quando se assentaram no Levante. Os curdos podem usar um território, mas o território não lhes pertence, pertence ao estado e ao povo da Síria. É hora de os curdos acordarem.


Mapa: Etnias no norte da Síria


E então? O que fazer com os curdos? Quem permanece ao lado deles?


Trump sempre esteve pronto para deixar para trás os curdos, mas adiou a decisão porque interessa a Israel – não aos EUA – manter a ocupação norte-americana no norte da Síria. Trump também quer dinheiro de Arábia Saudita e Emirados. Os EUA já estão convertidos em exército mercenário, “pistoleiros de aluguel”. 

Segundo a mídia, Emirados e Arábia Saudita ofereceram 400 milhões de dólares, mas Trump está pedindo 4 bilhões de dólares para manter em campo os soldados norte-americanos. Parece que as forças dos EUA converteram-se em espécie de galinha dos ovos de ouro distribuídos pelos ricos países do Oriente Médio. E nessa briga de cachorro grande não há lugar para os curdos.

A equação é muito simples: se as forças dos EUA ficam e ocupam o nordeste da Síria, Washington terá de investir para reconstruir a infraestrutura, o que implica gastar dinheiro de verdade. Não é movimento que combine com os objetivos de Trump, que quer recolher dólares, não investir, um dólar, que fosse. Isso é a realidade contra a qual os curdos resistem e, ao que parece, ainda não compreenderam completamente.

Para concluir, os curdos já não têm lugar especial sob as asas dos EUA. Deixaram de ser os únicos, no Oriente Médio, com laços com Israel. Bahrein, Arábia Saudita, Qatar e os Emirados já não escondem as visitas de funcionários de Israel e as reuniões de autoridades dos dois países, e todos falam abertamente a favor de melhor relacionamento com Tel Aviv.

Os sírios talvez só tenham uma última chance: recorrer ao governo central em Damasco para que opere como mediador; para isso, os curdos têm de parar de garantir cobertura a forças ocupantes, e compreender que não passam de bucha de canhão a serviço das relações EUA-Turquia. Os curdos precisam deixar bem claro que não mais se oferecerão como escudo atrás do qual os EUA movem-se para dividir a Síria. Mas todos os recentes gentes dos curdos evidenciam que tal mudança é extremamente improvável. 

Mas não há outra via adiante para eles. E ainda depende de decidirem tomar e conseguirem tomar essa via. Mas se o fizerem, ainda podem obter reintegração plena no Estado que os acolheu quando chegaram ao Levante, há 100 anos.*******

quarta-feira, 20 de junho de 2018

A palavra-chave no show Trump-Kim, por Pepe Escobar

13/6/2018, Pepe Escobar, Asia Times

 

reality-TV show geopolítico de Trump-Kim – para alguns, evento surreal – recebeu atenção sem igual nos anais da diplomacia internacional. Será difícil superar a cena em que o presidente dos EUA abre um iPad e mostra a Kim Jong-un um trailer estiloso à moda dos filmes de ação classe "B" dos anos 1980s – completado com a efígie de Sylvester Stallone – em que os dois líderes são apresentados como heróis destinados a salvar os 7 bilhões de habitantes do planeta. 
 
Longe da TV, o ex-"Homem Foguete", hoje já tratado respeitosamente por Trump como "Chairman Kim", marcou formidável gol de placa, ao fazer varrer completamente a temida sigla CVID – de "completa, verificável e irreversível desnuclearização" – do texto final da declaração conjunta.
 
Ao longo das negociações pré-encontro, a República Popular Democrática da Coreia (RPDC) sempre destacou uma estratégia de "ação em troca de ação" para chegar à desnuclearização, com Pyongyang recebendo compensações a cada passo do caminho, em vez de só haver compensações depois de a desnuclearização estar completada – processo que pode demorar mais de uma década.

A declaração conjunta de Singapura consagra exatamente o que a parceria estratégica Rússia-China – formalizada na recente reunião de cúpula da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) – já vinha sugerindo desde o início: congelamento recíproco.

A RPDC abstém-se de quaisquer n ovos testes nucleares e de mísseis, e EUA e Coreia do Sul param com seus "jogos de guerras" (como disse Trump, "war games").

Esse desdobramento lógico do mapa do caminho sino-russo baseia-se no que o presidente da Coreia do Sul Moon Jae-in decidiu, em comum acordo com Kim Jong-un, na cúpula intercoreana realizada em abril último. E isso se conecta com o que a Coreia do Norte, a Coreia do Sul e a Rússia já haviam discutido na cúpula do Extremo Oriente em Vladivostok em setembro passado, como Asia Times noticiou (traduzido aqui), de integração econômica entre a Rússia e as duas Coreias, incluindo a conexão crucialmente importante entre uma futura ferrovia Trans-coreana e a Trans-siberiana.

Mais uma vez, tudo aí tem a ver com a integração da Eurásia; maior comércio entre Coreia do Norte e Nordeste da China, mais diretamente com as províncias de Liaoning, Jilin e Heilongjiang; e total conexão física das duas Coreias com as regiões centrais da Eurásia.

É ainda mais uma instância de encontro das Novas Rotas da Seda, ou Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE), com a União Econômica Eurasiana (UEE). E não por acaso a Coreia do Sul quer conexão cada vez mais profunda com os dois blocos, da ICE e da UEE. Qualquer dúvida, releia a "Declaração de Panmunjom pela paz, prosperidade e unificação da península coreana", de 27/4/2018.

A declaração conjunta de Singapura não é acordo: é declaração. O item absolutamente chave é o n.3: "Reafirmando a Declaração de Pahmunjom de 27/4/2018, a RPDC compromete-se a trabalhar para a completa desnuclearização da Península Coreana."
 
Significa que EUA e RPDC trabalharão rumo à desnuclearização não só da RPDC, mas de toda a Península Coreana.

Muito mais que isso, em "…a RPDC compromete-se a trabalhar para a completa desnuclearização da Península Coreana", as palavras-chave são de fato "Reafirmando a Declaração de Pahmunjom de 27/4/2018".

Mesmo antes de Singapura, todos sabiam que a RPDC não se "desnuclearia" [ing. "de-nuke", terminologia de Trump) em troca de nada, especialmente quando só recebera dos EUA vagas "garantias".

Como se podia prever e previu-se, os dois lados, neoconservadores e imperialistas humanitários dos EUA estão unanimemente babando de fúria, imprecando contra a falta de "carne" na declaração conjunta. Verdade é que há ali muita carne. Singapura reafirma a Declaração de Panmunjom, que é acordo entre as duas Coreias.

Ao assinar a declaração conjunta de Singapura, Washington foi dado por notificado quanto à Declaração de Panmunjom. Em termos de lei, quando você é notificado de um fato você deixa de poder dizer, adiante, que 'não sabia' ou que 'nem quero saber'. O compromisso da RPDC de abrir mão de seu armamento nuclear nos termos da declaração de Singapura é reafirmação de seu compromisso nos termos da Declaração de Panmunjom, naqueles termos, não em outros termos, com todas as condições associadas àqueles termos. E Trump confirma esse entendimento, ao assinar a Declaração de Singapura.

Declaração de Panmunjom destaca que: "A Coreia do Sul e a Coreia do Norte confirmaram o objetivo comum de alcançar, através da desnuclearização completa, uma península coreana livre de armas nucleares. A Coreia do Sul e a Coreia do Norte compartilham a opinião de que as medidas iniciadas pela Coreia do Norte são muito importantes e cruciais para a desnuclearização da península coreana e concordaram em buscar ativamente o apoio e a cooperação da comunidade internacional para alcançar a desnuclearização da península coreana."

Esse é o compromisso. "Comunidade internacional", como todos sabem, é palavra em código para "EUA o Grão Decididor Universal." Se Washington não retirar seus militares da Coreia do Sul, não haverá desnuclearização. Na essência, foi esse o acordo discutido entre Kim e Xi Jinping nos dois encontros crucialmente importantes que tiveram antes da reunião de Singapura. Tirem os EUA da península, e podem contar com ela.

É isso. A palavra-chave na declaração conjunta de Singapura, para a qual deve convergir o foco é "reafirmando".*******
 
http://blogdoalok.blogspot.com/2018/06/a-palavra-chave-no-show-trump-kim-por.html#more
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu