Júlio da Silveira Moreira*
O ataque de Israel à Frota da Liberdade, no último dia 31 de junho, mostrou o terrorismo de Estado sem limites, uma ofensa ao direito internacional que não pode ser medida nem descrita em sua gravidade, especialmente porque se tratou de um ataque a uma missão de paz, indiscriminado contra nacionais de mais de 50 países. Os fatos falam por si sós:
- Desde 2007 Israel mantém bloqueio marítimo e terrestre sobre a Faixa de Gaza; no final de 2008, Israel reduziu a Faixa de Gaza a escombros e milhares de mortos. Nem após a II Guerra Mundial se viu tão cruel impedimento à reconstrução de um território afetado pela guerra;
- Essa prática revela o crime de genocídio, definido pelo art. 6º do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional como atos praticados “com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, inclusive “homicídio de membros do grupo”; “ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo”; e “sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial”.
- Por sua vez, o art. 8º do referido Estatuto define como crime de guerra “dirigir intencionalmente ataques ao pessoal, instalações, material, unidades ou veículos que participem numa missão de manutenção da paz ou de assistência humanitária, de acordo com a Carta das Nações Unidas, sempre que estes tenham direito à proteção conferida aos civis ou aos bens civis pelo direito internacional aplicável aos conflitos armados” (art. 8º.2.b.iii); “dirigir intencionalmente ataques a edifícios consagrados ao culto religioso, à educação, às artes, às ciências ou à beneficência, monumentos históricos, hospitais e lugares onde se agrupem doentes e feridos, sempre que não se trate de objetivos militares” (art. 8º.2.b.ix); “provocar deliberadamente a inanição da população civil como método de guerra, privando-a dos bens indispensáveis à sua sobrevivência, impedindo, inclusive, o envio de socorros, tal como previsto nas Convenções de Genebra” (art. 8º.2.b.xxv);
- A Frota da Liberdade é composta por 6 navios e é a nona tentativa do Movimento Gaza Livre para levar ajuda humanitária à Faixa de Gaza. Ela leva toneladas de alimentos, remédios, brinquedos e livros. A partida da frota foi anunciada publicamente e monitorada pela Internet por 24h por dia até seu ataque;
- O maior navio atacado (Mavi Marmara) possuía bandeira do Estado da Turquia, o que significa, de acordo a Convenção das Nações Unidas para o Direito do Mar (1982) que apenas aquele Estado possuía jurisdição sobre a embarcação;
- A presença de nacionais de dezenas de países nas embarcações mostra uma clara ofensa diplomática indiscriminada a esses países, uma vez que o respeito ao direito dos estrangeiros é uma condição para a regularidade das relações diplomáticas com seu país de origem;
- O ataque se deu em águas internacionais e não pode ser nem mesmo qualificado por Pirataria, pois esta é definida como a invasão de embarcações para fins privados, cujo fim é o patrimônio e não a matança de pessoas. A invasão da Frota da Liberdade não só foi praticada por um ente estatal com fins militares, como provocou a morte de várias pessoas, cujo número segue sem ser revelado, além de ferimentos graves e continuada prisão de ativistas;
- Embora esteja sendo anunciada a deportação dos tripulantes para a Turquia e Jordânia, os apoiadores palestinos à Frota da Liberdade continuam presos e com graves acusações, enquanto a imprensa internacional se mantém silente a esse respeito.
Responsabilidade penal internacional
O Conselho de Segurança da ONU, a partir de pedido oficial do Secretário-Geral da ONU, Ban Ki Moon, está pedindo uma “investigação imparcial” do incidente e a liberação dos presos e embarcações. O Conselho de Direitos Humanos da ONU, por sua vez, aprovou em regime de urgência o envio de uma delegação internacional de especialistas (missão de investigação internacional e independente), sendo vencido os EUA, que exigia que essa investigação fosse conduzida exclusivamente pelas autoridades israelenses.
O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional aponta que apenas pode ser julgado ali um indivíduo nacional de um Estado que tenha ratificado seu texto, o que não é o caso de Israel. Mas o art. 13 aponta que o Conselho de Segurança da ONU pode encaminhar ao Procurador denúncia mesmo quando o Estado não seja membro do Estatuto, como ocorreu nas denúncias contra nacionais do Sudão.
Ocorre que, para que o Conselho de Segurança da ONU tome essa decisão, não pode ter o veto de nenhum dos seus 5 membros permanentes: EUA, Reino Unido, França, Rússia e China.
Esse contexto deixa claro que o Direito Internacional está todo “desenhado” para que crimes como os cometidos por Israel, que se encontram no interesse das potências imperialistas, não sejam responsabilizados. Não é estranho que os atuais réus do Tribunal Penal Internacional sejam de países africanos, vitimados por conflitos que possuem como causa, em última instância, os distúrbios criados pelas forças de colonização desde o século XIX.
A posição do Estado brasileiro
O Estado brasileiro, em nota do Ministério das Relações Exteriores, condenou o ataque aos civis desarmados, enfatizando que as embarcações estavam em águas internacionais.
Na situação já demonstrada, resta claro que uma declaração como esta não é suficiente para responder ao ocorrido, devendo tomar medidas concretas como a exigência de responsabilização dos agentes de Israel e a ruptura de relações comerciais e diplomáticas com aquele Estado, em atenção à prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais, tal como apontado no art. 4º, inciso II, da Constituição Federal.
O Estado brasileiro tem se demonstrado, por diversas vezes, como um órgão complementar da diplomacia estadunidense, assumindo tarefas vitais para o imperialismo e diante do desgaste daquela. Tal se revela não só nas declarações oficiais sobre o Oriente Médio, mas também no pouco divulgado acordo de cooperação militar celebrado com os EUA no início de maio, que continua obscuro, e levou especialistas a qualificarem o Brasil como “sub-império” dos EUA para a América Latina e além.
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*Professor de Direito Internacional e Vice-presidente da Associação Internacional dos Advogados do Povo. Site: www.direitodospovos.wordpress.com
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O ataque de Israel à Frota da Liberdade, no último dia 31 de junho, mostrou o terrorismo de Estado sem limites, uma ofensa ao direito internacional que não pode ser medida nem descrita em sua gravidade, especialmente porque se tratou de um ataque a uma missão de paz, indiscriminado contra nacionais de mais de 50 países. Os fatos falam por si sós:
- Desde 2007 Israel mantém bloqueio marítimo e terrestre sobre a Faixa de Gaza; no final de 2008, Israel reduziu a Faixa de Gaza a escombros e milhares de mortos. Nem após a II Guerra Mundial se viu tão cruel impedimento à reconstrução de um território afetado pela guerra;
- Essa prática revela o crime de genocídio, definido pelo art. 6º do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional como atos praticados “com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, inclusive “homicídio de membros do grupo”; “ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo”; e “sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial”.
- Por sua vez, o art. 8º do referido Estatuto define como crime de guerra “dirigir intencionalmente ataques ao pessoal, instalações, material, unidades ou veículos que participem numa missão de manutenção da paz ou de assistência humanitária, de acordo com a Carta das Nações Unidas, sempre que estes tenham direito à proteção conferida aos civis ou aos bens civis pelo direito internacional aplicável aos conflitos armados” (art. 8º.2.b.iii); “dirigir intencionalmente ataques a edifícios consagrados ao culto religioso, à educação, às artes, às ciências ou à beneficência, monumentos históricos, hospitais e lugares onde se agrupem doentes e feridos, sempre que não se trate de objetivos militares” (art. 8º.2.b.ix); “provocar deliberadamente a inanição da população civil como método de guerra, privando-a dos bens indispensáveis à sua sobrevivência, impedindo, inclusive, o envio de socorros, tal como previsto nas Convenções de Genebra” (art. 8º.2.b.xxv);
- A Frota da Liberdade é composta por 6 navios e é a nona tentativa do Movimento Gaza Livre para levar ajuda humanitária à Faixa de Gaza. Ela leva toneladas de alimentos, remédios, brinquedos e livros. A partida da frota foi anunciada publicamente e monitorada pela Internet por 24h por dia até seu ataque;
- O maior navio atacado (Mavi Marmara) possuía bandeira do Estado da Turquia, o que significa, de acordo a Convenção das Nações Unidas para o Direito do Mar (1982) que apenas aquele Estado possuía jurisdição sobre a embarcação;
- A presença de nacionais de dezenas de países nas embarcações mostra uma clara ofensa diplomática indiscriminada a esses países, uma vez que o respeito ao direito dos estrangeiros é uma condição para a regularidade das relações diplomáticas com seu país de origem;
- O ataque se deu em águas internacionais e não pode ser nem mesmo qualificado por Pirataria, pois esta é definida como a invasão de embarcações para fins privados, cujo fim é o patrimônio e não a matança de pessoas. A invasão da Frota da Liberdade não só foi praticada por um ente estatal com fins militares, como provocou a morte de várias pessoas, cujo número segue sem ser revelado, além de ferimentos graves e continuada prisão de ativistas;
- Embora esteja sendo anunciada a deportação dos tripulantes para a Turquia e Jordânia, os apoiadores palestinos à Frota da Liberdade continuam presos e com graves acusações, enquanto a imprensa internacional se mantém silente a esse respeito.
Responsabilidade penal internacional
O Conselho de Segurança da ONU, a partir de pedido oficial do Secretário-Geral da ONU, Ban Ki Moon, está pedindo uma “investigação imparcial” do incidente e a liberação dos presos e embarcações. O Conselho de Direitos Humanos da ONU, por sua vez, aprovou em regime de urgência o envio de uma delegação internacional de especialistas (missão de investigação internacional e independente), sendo vencido os EUA, que exigia que essa investigação fosse conduzida exclusivamente pelas autoridades israelenses.
O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional aponta que apenas pode ser julgado ali um indivíduo nacional de um Estado que tenha ratificado seu texto, o que não é o caso de Israel. Mas o art. 13 aponta que o Conselho de Segurança da ONU pode encaminhar ao Procurador denúncia mesmo quando o Estado não seja membro do Estatuto, como ocorreu nas denúncias contra nacionais do Sudão.
Ocorre que, para que o Conselho de Segurança da ONU tome essa decisão, não pode ter o veto de nenhum dos seus 5 membros permanentes: EUA, Reino Unido, França, Rússia e China.
Esse contexto deixa claro que o Direito Internacional está todo “desenhado” para que crimes como os cometidos por Israel, que se encontram no interesse das potências imperialistas, não sejam responsabilizados. Não é estranho que os atuais réus do Tribunal Penal Internacional sejam de países africanos, vitimados por conflitos que possuem como causa, em última instância, os distúrbios criados pelas forças de colonização desde o século XIX.
A posição do Estado brasileiro
O Estado brasileiro, em nota do Ministério das Relações Exteriores, condenou o ataque aos civis desarmados, enfatizando que as embarcações estavam em águas internacionais.
Na situação já demonstrada, resta claro que uma declaração como esta não é suficiente para responder ao ocorrido, devendo tomar medidas concretas como a exigência de responsabilização dos agentes de Israel e a ruptura de relações comerciais e diplomáticas com aquele Estado, em atenção à prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais, tal como apontado no art. 4º, inciso II, da Constituição Federal.
O Estado brasileiro tem se demonstrado, por diversas vezes, como um órgão complementar da diplomacia estadunidense, assumindo tarefas vitais para o imperialismo e diante do desgaste daquela. Tal se revela não só nas declarações oficiais sobre o Oriente Médio, mas também no pouco divulgado acordo de cooperação militar celebrado com os EUA no início de maio, que continua obscuro, e levou especialistas a qualificarem o Brasil como “sub-império” dos EUA para a América Latina e além.
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*Professor de Direito Internacional e Vice-presidente da Associação Internacional dos Advogados do Povo. Site: www.direitodospovos.wordpress.com
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