Acho que esqueceram novamente de perguntar!
*Stelinha
Na Palestina não existem condições objetivas, nem subjetivas para dois Estados: nem políticas, nem econômicas e nem geográficas.
Este é um sentimento que vem tomando corpo entre os palestinos, principalmente após o desastre que significou em suas vidas, sob ocupação militar, os acordos de Oslo. É uma discussão que tem movimentado muito a militância que resiste à ocupação e circula, sobretudo, entre as organizações populares dos bairros ameaçados, como os Comitês Populares; um amplo setor da esquerda palestina; os refugiados; as organizações políticas, inclusive aquelas construídas por árabes e judeus, como os Filhos da Terra e todos os grupos populares que estão empenhados na luta contra o aparthaid.
Obviamente, não pensam assim aqueles cujo interesse é manter o status quo, ou seja: legitimar a ocupação sionista como o imperialismo:
“Proponho que até a próxima reunião da Assembléia geral da ONU haja um acordo que leve a criação de um novo membro da ONU, um Estado soberano independente Palestino que viva em paz com Israel” (24/09/2010 – Presidente dos EUA Barack Obama).
“... apoio aos esforços pela criação do Estado palestino”.(Presidente da França Sarkozy ao Presidente Palestino Mahmoud Abbas)
Há notícias de que setores estratégicos ligados à área de segurança - leia-se serviço secreto, polícia política (Mossad, Shin Bet e do exército)- se organizaram em um movimento chamado “Iniciativa israelita pela paz”, grupo a favor da criação de um Estado Palestino.
Mas, também, não pensa assim uma parcela dos palestinos identificados com a Fatah, com AP – Autoridade Palestina – facção que ocupa a Presidência da Palestina e que assinou com o grupo Hamas, eleito pelos palestinos para governar Gaza, no dia 4 de maio, uma declaração de intenções, cujo objetivo é a unidade dessas duas facções.
Também, não pensam assim algumas organizações da esquerda judaica que participam de manifestações conjuntas com os palestinos, declararam firmemente seus apoios humanísticos à causa, mas não conseguem se libertar do espectro Israel, “a terra prometida”, ou pela opção de não desejarem abrir mão de seus privilégios garantidos pelo Estado sionista nas terras palestinas ou, outras, por terem uma visão tática reformista de avanços progressistas por etapas, outras, ainda, por reduzir a natureza do Estado sionista a um problema da democracia do governo de plantão.
Dessa forma observamos, sem ainda uma devida análise aprofundada, e de modo geral, que existem atualmente no movimento palestino duas grandes linhas de opinião, cuja visão, propostas e campo de atuação política, são absolutamente distintas. Essa pequena contribuição tentará trazer um pouco de luz as dúvidas que normalmente a militância internacionalista tem com relação as duas propostas da pauta palestina: Um Estado para todos ou dois Estados?
Em primeiro lugar, precisamos limpar a área sobre a questão da votação da ONU.
Apesar da sinalização dos EUA, da França e de outros aliados do sionismo, os EUA já declararam que vetarão a proposta, a pedido do amigo leal, caso a AP de fato a apresente e esta consiga passar pela Assembléia, antes de ir para o Conselho de Segurança. Há alguma novidade nessa aparente contradição? Resposta: Não!
“Apesar da AP ter aceito os “Acordos de Oslo”; de “Madri” e o “Mapa do caminho” desenhados por Washington; foi Israel quem rechaçou abertamente e colocou, imediatamente, em prática um plano de expansão mais ambicioso! Em seguida, a posição política da OLP junto às massas palestinas se debilitou muito...” (Samir Amim).
2 – Do momento que a Autoridade Palestina(AP) iniciou uma agitação mundial com a consigna de um Estado Palestino reconhecido pela ONU com base nas fronteiras de 1967, tem declarado, em todas as ocasiões, através de Mahmoud Abbas, que só fará a petição se Israel mantiver seu projeto de não sentar para negociar, que prefere a negociação à declaração unilateral.
3 – Por outro lado, Israel ao mesmo tempo que orienta suas embaixadas mundo afora trabalharem, sem férias, junto aos governos dos países para que votem contra o Estado Palestino, caso esta seja apresentada, sinaliza para Abbas que esta decisão não deve ser unilateral, deve ser negociada.
4 – A recente reunião da União Européia (UE) sinalizou neste mesmo sentido, ou seja, que é necessário uma grande negociação para finalmente alcançarmos a paz; mesma posição do imperialismo americano.
Resumindo, o que está em discussão é menos o resultado da Assembléia da ONU, ou se haverá mesmo uma petição a ser votada, o que está de fato em jogo é o que está sendo elaborado pelo Quarteto diplomático para o Oriente Médio (ONU, UE, Rússia e EUA), pela liga árabe, pelo sionismo e que será negociado com a AP. O líder do Hamas denunciou que a AP colocou em “banho maria” o fechamento do acordo de reconciliação entre as duas facções para ficar livre para os entendimentos que porventura venham a surgir. Um dos pontos críticos da discussão entre as duas facções, principais dirigentes do movimento palestino – Fatah e Hamas - ainda não acordado, é sobre o nome de quem ocupará o cargo de primeiro ministro. O nome da Fatah para o posto é Salam Fayyad que ocupa atualmente o mesmo cargo que está sendo discutido. O problema é que ele é um notório e conhecido amigo dos EUA e Israel.
Todos nós, ativistas internacionalistas, comprometidos com a causa palestina desejaríamos imensamente que esses 64 anos de duras e intensas lutas contra o genocídio, a limpeza étnica diária nos territórios; as torturas; as prisões das crianças; os mais de sete mil prisioneiros políticos; o muro do aparthaid; a destruição de casas e bairros inteiros, sob alegações místicas e messiânicas; a posse militar seguida de destruição dos cemitérios milenares para construção de museus do holocausto; o tráfico de órgãos; o bloqueio à Gaza; os efeitos das armas proibidas sobre a população e outras tantas barbaridades sumissem como num passe de mágica (ou da ONU) com a campanha que a AP organiza pela construção de dois Estados na Palestina histórica.
Contudo, não me parece que contribui para o fortalecimento da luta, que os palestinos travam contra a ocupação, que o contexto histórico e todas suas implicações sejam deliberadamente subtraído dessa discussão e só lembrados em atos, manifestos e discursos. Seria bom abstrair o rosto do inimigo? As ações de terror do seu exército? Que os palestinos vivem sob um Estado que é racista e fascista e controla tudo, goza de impunidade e é parceiro econômico e militar de quase todos os países do mundo? Ao abstrair a história, temo que a saída encontrada pelos dirigentes não responda às necessidades históricas desse povo.
Quem de nós não ficaria feliz por tirar a Palestina das nossas agendas atolada de tarefas de solidariedade e defesa da luta de outros povos oprimidos? E ir até lá festejar com o povo palestino? Mas...festejar que Estado?
A realidade é muito dura!
O que os palestinos perdem com a proposta de dois Estados:
A proposta da construção de um Estado Palestino da forma que está colocada tira do Estado ocupante a responsabilidade por todas as atrocidades que cometeu, comete, e ainda cometerá, diariamente, contra o povo e sua terra; legitima a ocupação militar; coloca numa situação de despejo os 1,5 milhões de palestinos que conseguiram se manter nos territórios ocupados em 1948, que deu origem à criação do Estado judeu; retira dos refugiados o direito inalienável do retorno para sua terra, afinal o ocupante passaria a ter a posse legal das terras onde existiam as aldeias dos palestinos; legitima todos os privilégios construídos sob os escombros e o sangue dos palestinos e diminui, absurdamente ainda mais, a extensão territorial aprovada pela ONU, sem a consulta ao povo que lá vivia, na votação da partilha em 1948, que “concedia” aos donos da terra, os palestinos, a posse de apenas 48% da Palestina Histórica e a doação de 52% das terras palestinas para os europeus construírem um Estado Judeu.
A proposta de dois Estados, que está sendo agitada pela AP, representa 20% da Palestina Histórica, mas como a referência à fronteira de 1967 é somente uma base para a negociação, estima-se em 5% o que está sendo negociado nos bastidores do império, cuja base é a sólida realidade da fragmentação territorial e da, praticamente, posse quase absoluta do território pela ocupação que administra o Estado apenas para os judeu, que gozam de plenos direitos nacionais; Estado onde os árabes palestinos são tratados como inferiores, sem nenhum direito, pela lei do cão.
Um Estado cujo sistema é o aparthaid.
O Estado judeu tem o controle absoluto sobre as doações humanitárias; a economia; tudo o que se produz e é comercializado pelos palestinos; o controle total da água consumida; da energia; dos combustíveis; do acesso aos remédios; do que os alunos devem aprender nas escolas; tem o controle total das estradas que cortam impiedosamente todo o território, criando verdadeiras malhas e redes entre as colônias judaicas que isolam e sufocam, cada vez mais, as aldeias palestinas em pontos minúsculos na rede sionista de estradas, onde somente pode circular os judeus e os tratores do Estado judeu que irão destruir mais uma aldeia para construção de uma nova colônia. Qual desses pequenos fragmentos palestinos se chamará Estado Palestino, sem direitos e totalmente dominado e controlado por Israel? Qual devemos comemorar?Obviamente, que haverá alguma concessão para a elite que irá dirigir este bantustão.
(Os bantustões foram pseudo-estados de base tribal criados pelo regime do apartheid na África do Sul, de forma a manter os negros fora dos bairros e terras brancas, mas suficientemente perto delas para servirem de fontes de mão-de-obra barata.)
Esta é a essência da proposta de dois Estados!
Dessa forma, a construção do Estado Palestino significa a consolidação e o fortalecimento do Estado sionista, fascista, racista e teocrático. Em outras palavras: O projeto de limpeza étnico mais perfeito e mais completo, e de quebra: o apoio da comunidade internacional e da opinião pública desavisada e dos ativistas de boa fé. Por isso, o imperialismo apóia a construção de um Estado Palestino e prepara junto com os aliados um desfecho negociado contra o povo palestino.
Medo ou desprezo das massas
O mais grave dessa discussão é que no afã de mudar o cenário e o palco onde se desenrolam as lutas diárias do povo palestino, oxigenadas pelo calor das massas árabes nas ruas, exigindo seus direitos e lutando contra os ditadores e déspotas corruptos aliados do imperialismo-sionismo, que os mantiveram reféns da miséria, até agora, enquanto entregavam, e ainda entregam, as riquezas do oriente médio a sanha do capital, a AP, representada pelo Presidente Abbas e seu primeiro ministro, Fayyad, sem consultar o povo palestino e sem reconhecer a existência de outra proposta divergente no seio do povo, projetou uma campanha de agitação que busca o foco na mesa de negociação e nas instituições, onde o sionismo é absolutamente forte.
A “primavera árabe” significou um forte motivo para que a elite mundial dos países imperialista, esta pequena oligarquia do capital financeiro-bélico-produtivo, acendesse a luz de “atenção” e “cuidado” no Oriente Médio. Era necessário e urgente promover uma agitação que tirasse o foco do crescente sentimento anti-sionista e de não reconhecimento do Estado judeu pelas massas árabes em movimento, expressas em todas as ocasiões nas grandes manifestações e devidamente escondido pelas mídias pró-sionistas.
A essa altura as massas palestinas se notaram parte de um grande movimento árabe de luta contra a opressão, não estavam mais sozinhos na luta contra o sionismo: Os Comitês Populares, nos bairros ameaçados; a organização e a jornada espetacular dos refugiados tentando voltar para suas casas em manifestações nas fronteiras, no dia do Nakba; a campanha de Boicote, Desinvestimento e Sanções ganhando corações e mentes mundo afora, a organização das flotilhas humanitárias, a organização da “Bem vindos à Palestina se vocês conseguirem entrar”; a discussão e organização da 3º Intifada; as mobilizações permanentes contra o Muro do Aparthaid; a clareza na denuncia do caráter fascista do Estado sob o qual suas vidas são despedaçadas e a compreensão e maturidade na discussão da construção de um Estado laico, democrático, não racista para todos os povos, com o retorno dos refugiados. Em outras palavras: a construção da proposta de “um Estado para todos os povos, com o retorno dos refugiados” foi construída no calor das lutas e dos enfrentamentos diários, sem abstrair um milímetro qualquer parte do processo histórico e os sérios problemas sejam eles de caráter social ou político, nas relações internas ou externas ou de correlação de forças. Esta proposta acredita firmemente, que apesar da dura realidade, a luta do povo, com o apoio da solidariedade internacionalista, tem condições de construir um futuro digno e justo, diferente da situação atual.
Mas, infelizmente nada disso, ou o que pode ser pior, tudo isso fez com que uma parcela, representada pela facção dirigente, desprezasse sem o menor respeito as posições divergentes sobre o tema e decidisse encaminhamentos, sem ouvir e sem representar a totalidade do povo palestino, levando confusão no seio da militância internacionalista e gerando expectativas falsas e virtuais nos simpatizantes da causa.
Como internacionalista e comprometida com a luta e causa do povo palestino me preocupo profundamente com os rumos dessa saída proposta, mas confiamos na sabedoria do povo palestino e na sua histórica determinação para seguir lutando; reafirmamos nosso irrestrito apoio internacionalista e, por fim, nos perfilamos com aqueles que exigem, lá da Palestina, que se abra imediatamente um processo democrático, onde o povo possa se manifestar sobre as posições políticas e escolher, enfim, suas novas representações legítimas, com a participação dos refugiados.
Assina este documento:
*Maristela Rosangela dos Santos Pinheiro, da coordenação do Comitê de Solidariedade à Luta do Povo Palestino RJ, cientista política formada pela UFRJ, autora do livro “Impressões de uma brasileira na Palestina” e participante da “II Conferencia Internacional de Haifa pela construção de uma Palestina laica, Livre e soberana para todos, com o retorno dos refugiados”, em 2010.
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