sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Desce a cortina para os EUA na Síria


O cenário acordado nos bastidores ao longo de meses de conversas confidenciais, muitas vezes só entre duas pessoas, dentre os líderes russos e turcos quanto ao Nordeste da Síria está a entrar numa fase crítica de implementação sobre o terreno com o acordo dos curdos e do governo Assad.
Temos um cenário complexo onde por um lado o exército turco e as unidades de oposição síria leais a Ancara estão implacavelmente a continuar sua ofensiva para Sul expandindo o controle sobre regiões fronteiriças da Síria habitadas pelos curdos. De acordo com o presidente turco, Recep Erdogan, 1000 km2 de território anteriormente sob controle curdo foi " libertado ".
Por outro lado, na sequência do acordo com os curdos, as primeiras colunas de forças do governo sírio moveram-se para o Norte do país rumo à fronteira turca.
À primeira vista, Damasco está a desafiar a ofensiva turca – como deveria – e, em princípio, uma confrontação pode seguir-se. Mas as coisas na Síria nunca são realmente exactamente o que parecem superficialmente.
Um choque entre forças turcas e síria está simplesmente fora de questão. Esse não é o jogo a ser jogado. Uma declaração do Ministério da Defesa turco na segunda-feira revelava que o militar chefe, general Yasar Guler e seu equivalente russo, o general Valery Gerasimov, estavam em contacto telefónico e discutiam a "situação da segurança na Síria e os desenvolvimentos recentes".
Não foram divulgados mais pormenores mas o quadro que emerge é que a Rússia propôs e a Turquia concordou em que unidades russas estarão a patrulhar entre as forças turcas e síria no Norte da Síria após a retirada das tropas dos EUA daquela área.
Consequentemente, o Ministério da Defesa de Moscovo revelou que a sua polícia militar na cidade curda de Manbij começou a patrulhar ao logo da fronteira sírio-turca e a interagir com autoridades turcas. Tropas russas entraram segunda-feira na cidade de Manbij com as forças do governo sírio.
Ainda mais importante, através da mediação russa Ancara e Damasco preferirão acordar sobre a divisão das zonas de controle no Norte da Síria. Isso equivale a dizer que em linhas gerais as coisas estão a mover-se na direcção do que o Acordo de Adana de 1998 (sobre a questão curda) pretendia, nomeadamente que a segurança da fronteira sírio-turca será um assunto bilateral entre Ancara e Damasco.
Na situação em causa, a necessidade imperativa da Turquia é impedir que surja um "Curdistão" contíguo nas suas fronteiras. A chamada "zona segura" destinava-se a frustrar os planos dos EUA de criar um Curdistão na Síria, semelhante ao que conseguiu criar no Iraque na era de Saddam Hussein.
É razoável argumentar que poderia haver congruência de interesses entre Ancara e Damasco acerca deste ponto (Teerão também tem interesses comuns com seus dois vizinhos quanto a isso).
Na verdade, para Damasco tudo isto é uma felicidade na medida em que a "retirada deliberada" (como o Pentágono colocou isto) ou, mais precisamente, a inevitável remoção das tropas dos EUA nas regiões a Norte da Síria desencadeadas pela incursão turca, permite-lhe reocupar parte das regiões nortistas, especialmente aquelas partes que são bem dotadas de recursos de água e reservas de hidrocarbonetos, as quais os militares americanos haviam designado como sua zona exclusiva.
Para o presidente Bashar al-Assad, isto é um grande salto em frente no cumprimento da sua promessa de reclamar o controle de toda a Síria (ver o comentário da Euronews: Damasco parece mais forte do que nunca: O que se passará a seguir na Síria quanto forças curdas se juntarem a Assad? ).
Quanto aos curdos, eles não têm nenhum lugar para ir excepto acomodar-se com Damasco. Eles simplesmente não estão à altura para o altamente profissional exército turco.
Claramente, a incursão turca e a iminente ofensiva contra os curdos tornou indefensável a continuada presença militar americana no Norte da Síria e a Rússia alavancou a situação para promover o acordo entre os curdos e Damasco.
Tendo conseguido êxito neste esforço, os russos ganharam a confiança dos turcos. Não surpreendentemente, o presidente Recep Erdogan é indiferente quanto ao acordo entre os curdos e Damasco e encolheu os ombros para os movimentos das tropas sírias junto às fronteiras da Turquia. Ele evasivamente referiu-se às garantias de Vladimir Putin.
Na análise final, os americanos estão a pagar um preço forte por serem espertos pela metade – tensionando a Turquia nos últimos anos enquanto metodicamente consolidavam o terreno para a criação de um Curdistão autónomo nas suas fronteiras, além de armar e treinar a milícia curda para transformá-la num exército regular.
Erdogan deu uma longa corda para que os americanos se enforcassem a si próprios, literalmente. Quando ele atacou, as contradições da política dos EUA foram reveladas de imediato – o plano de jogo de balcanizar a Síria e derrubar Assad; o pacto faustiano com um grupo terrorista que tem sido um sangrento aliado da NATO; e a agenda geopolítica de seccionar o eixo do Irão com a Síria e o Levante.
Basta dizer que, com a remoção das forças estado-unidenses do Norte da Síria, os turcos alcançaram algo que a Rússia e o Irão (e Damasco) sempre desejaram, mas não podiam conseguir. A partir deste ponto, a Rússia e o Irão prevalecerão sobre Ancara para que se reconcilie com Damasco.
Os EUA entenderam tardiamente que a Turquia terminou sumariamente sua intervenção de oito anos na Síria para derrubar o regime Assada. A rancorosa reacção de Trump e do secretário da Defesa dos EUA, Mark Esper ( aqui e aqui ) é evidente.
Mas a ameaça das sanções dos EUA não deterá Erdogan, pois o espectro do Curdistão em suas fronteiras ameaçava a soberania e a integridade territorial da Turquia e não há espaço para concessões quando a segurança nacional está sob ameaça. A propósito, a opinião pública interna turca é esmagadoramente favorável a Erdogan.
A Turquia foi estranhamente paciente com os EUA, esperando que este desistisse da ligaçlão com o YPG (milícia curda) quando a luta contra o ISIS estivesse acabada. Não é tanto Trump, mas sim o Pentágono, responsável pela quebra de confiança entre a Turquia e os EUA. Como na maior parte das questões de política externa, Washington tinha duas políticas na Síria – a de Trump e a do establishment de segurança e defesa dos EUA.
Os EUA, sob o direito internacional, não têm locus standii de manter uma presença militar permanente na Síria e quando anunciou pela primeira vez a retirada das tropas, ela deveria ter sido implementada. Mas, ao invés disso, o Pentágono minou a decisão de Trump, reduziu-a e finalmente ignorou-a completamente.
Erdogan sabe que os EUA vão bufar, mas vão se habituar ao "novo normal" na Síria. A Europa tão pouco terá um álibi, pois os russos nunca permitirão que o ISIS ascenda na Síria. Trump está a incumbir o vice-presidente Mike Pence de viajar à Turquia em busca de um "acordo negociado" – o que quer que isso possa significar para enfrentar o facto consumado criado por Erdogan.

Melkulangara Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Deccan Herald e Asia Online. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante comunista do Kerala.

https://www.resistir.info/moriente/bhadrakumar_15out19.html

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