Traduzido e comentado por Baby Siqueira
Abrão
Comentário
da tradutora:
Quem me conhece sabe que penso exatamente como Hedges. Infelizmente, não tenho
seu talento e meu artigo sobre esse assunto está só na forma de
esboço.
É
preciso ler este texto para entender por que os sionistas estão pressionando
tanto o FSMPL (Fórum Social Mundial pela Palestina Livre)-- trata-se de uma
pedra no sapato de quem, como eles, vêm mostrando as garras na América Latina e
dominando nossos governos. É
preciso ler este texto para saber por que insisto tanto num foco de luta mais
amplo, contra o sionismo.
Vamos
deixar como está ou vamos reagir?
Gaza é a janela de nossa futura distopia. A crescente divisão entre a elite do mundo e sua miserável massa de humanidade é mantida por meio de uma violência em espiral. Muitas regiões empobrecidas do planeta, que caíram no abismo econômico, começam a assemelhar-se a Gaza, onde 1,6 milhões de palestinos vivem no maior campo de concentração do planeta [1].
Essas
zonas de sacrifício, cheias de pessoas deploravelmente pobres, presas em favelas
miseráveis ou em aldeias cujas casas têm paredes de barro, cada vez mais vêm
sendo sitiadas por cercas eletrônicas, monitoradas por câmeras de vigilância e
drones, e rodeadas por guardas de fronteira ou unidades militares que atiram
para matar.
Ilustração: Mr. Fish |
Essas
distopias de pesadelo se estendem da África subsaariana ao Paquistão e à China.
Nesses locais, assassinatos propositais são executados, ataques militares
brutais são feitos a pessoas deixadas sem defesa, sem exército, sem marinha e
sem força aérea. Todas as tentativas de resistência, embora ineficazes, deparam
com a carnificina que caracteriza a moderna indústria da
guerra.
No
novo cenário global, como nos territórios ocupados por Israel e nos projetos
imperialistas dos EUA no Iraque, no Paquistão, na Somália, no Iêmen e no
Afeganistão, massacres de milhares de inocentes indefesos são classificados como
“guerra”.
A
resistência é denominada provocação, terrorismo ou crime contra a humanidade. O
respeito às leis, assim como as mais básicas liberdades civis e o direito à
autodeterminação, é uma ficção usada como relações-públicas para aplacar a
consciência de quem vive nas zonas de privilégio.
Prisioneiros
são rotineiramente torturados ou “desaparecidos”. A falta de alimentos e de
suprimentos médicos são uma tática de controle aceita. Mentiras permeiam as
ondas eletromagnéticas (rádios e TVs). Grupos religiosos, raciais e étnicos são
demonizados. Chovem mísseis sobre casebres de alvenaria, unidades mecanizadas
atiram em aldeões desarmados, canhoneiras esmagam campos de refugiados com
bombardeios pesados, e os mortos, incluindo crianças, enfileiram-se em
corredores de hospitais aos quais faltam eletricidade e
medicamentos.
O
colapso iminente da economia internacional, os ataques ao clima e suas
consequências, como secas, alagamentos, declínio rápido de safras e aumento no
preço dos alimentos estão criando um universo onde o poder se divide entre
elites restritas, que têm nas mãos sofisticados instrumentos de morte, e massas
enraivecidas.
As
crises vêm incentivando uma guerra de classes que sobrepujará tudo aquilo que
Karl Marx poderia ter imaginado. Elas estão construindo um mundo onde a maioria
terá fome e viverá com medo, enquanto poucos irão se empanturrar com delícias
em fortins
protegidos. E mais e mais pessoas serão sacrificadas para
manter esse desequilíbrio.
Por
ter poder para isso, Israel – assim como os Estados Unidos –
desrespeitam
[2] o direito
internacional para manter na miséria uma população dominada. A presença
continuada das forças de ocupação israelenses [nos Territórios Palestinos
Ocupados- TPOs] desafia quase cem resoluções do Conselho de Segurança da ONU
pedindo sua retirada [dos TPOs].
O
bloqueio israelense a Gaza, estabelecido em junho de 2007, é uma forma brutal de
punição coletiva que viola o artigo 33 da IV Convenção de Genebra, que determina
as regras para a “proteção de civis em tempo de guerra”.
O
bloqueio transformou Gaza num pedaço de inferno, num gueto administrado por
Israel onde milhares morrem, incluindo os 1,4 mil [são quase 1,5 mil] civis
assassinados na incursão israelense de 2008. Com 95% das fábricas fechadas, a
indústria palestina virtualmente parou de funcionar. Os restantes 5% operam com
25% a 50% de sua capacidade. Até o setor pesqueiro está moribundo. Israel
recusa-se a permitir que os pescadores ultrapassem três milhas náuticas da
costa, e dentro desse limite os barcos pesqueiros com frequência são alvo dos
tiros israelenses.
As patrulhas de fronteira
israelenses confiscaram 35% das terras cultiváveis de Gaza para criar nelas
zonas-tampões
[3].
O
colapso da infraestrutura e o confisco israelense dos aquíferos fazem com que em
muitos campos de refugiados, como Khan Yunis, não haja água corrente.
A
Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados Palestinos (UNRWA, na
sigla em inglês) estima que 80% de todos os habitantes de Gaza dependem,
atualmente, de ajuda alimentar. E a alegação israelense de autodefesa esconde o
fato de que Israel mantém uma ocupação ilegal e viola o direito internacional ao
impor a punição coletiva aos palestinos.
Foi
Israel que escolheu aumentar a violência quando, durante uma incursão a Gaza no
início do mês, suas forças mataram um garoto de 13 anos. À medida que o mundo se
arrebenta, este se torna o novo paradigma: senhores da guerra modernos se
inundam com tecnologias e armas aterrorizantes, que matam povos inteiros.
Fizemos
[os estadunidenses] o mesmo no Afeganistão, no Iraque, no Paquistão, no Iêmen e
na Somália.
As
forças do mercado e os mecanismos militares que protegem essas forças são a
única ideologia que governa os Estados industriais e o relacionamento dos seres
humanos com o mundo natural. É uma ideologia que resulta em milhões de mortos e
outros milhões de desalojados no mundo moderno. E a espantosa/abominável álgebra
dessa ideologia significa que essas forças irão, eventualmente, também
desencadear-se sobre nós.
Aqueles
que não são úteis para as forças do mercado são considerados descartáveis. Não
têm direitos nem legitimidade. Sua existência, seja em Gaza, seja em cidades
pós-industriais doentes como Camden, Nova Jersey, é considerada dejeto da
eficiência e do progresso. Essas pessoas são vistas como refugo. E como refugo
não têm voz nem liberdade, e podem ser extintas ou aprisionadas à vontade. Este
é um mundo onde apenas o poder corporativo e o lucro são sagrados. É um mundo de
barbárie.
“Ao dispor do poder de trabalho humano, o
sistema disporia, incidentalmente, da entidade “ser humano” sob os pontos de
vista físico, psicológico e moral”, escreveu Karl Polanyi [4] em The Great
Transformation [A grande transformação].
E continua:
Privados
da cobertura protetora de instituições culturais, os seres humanos pereceriam
diante dos efeitos da exposição social; morreriam como vítimas de deslocamentos
sociais agudos em consequência do vício, do crime e da fome.
A
natureza seria reduzida a seus elementos, com vizinhanças e paisagens violadas,
rios poluídos, segurança militar ameaçada, poder de produzir alimentos e matéria
prima destruído.
Finalmente,
a administração do mercado de compra de poder periodicamente liquidaria empresas
comerciais porque a escassez e a fartura de dinheiro provariam ser tão
desastrosas para os negócios como os alagamentos e as secas para as sociedades
primitivas.
Sem
dúvida, os mercados de trabalho, da terra e do dinheiro são essenciais para uma
economia de mercado. Mas nenhuma sociedade pode aguentar os efeitos desse
sistema de ficções brutas, nem mesmo pelo menor período, a menos que sua
substância humana e natural, assim como sua organização de negócios, estejam
protegidas contra os estragos desse moinho satânico.
Existem
47,1 milhões de estadunidenses que dependem de auxílio-alimentação para comer.
As elites estão tramando acabar com esse auxílio, assim como com outros
programas de “direitos” que evitam que os pobres se tornem miseráveis.
O
ímpeto de trilhões de dólares do Medicare, Medicaid e de outros programas
sociais, dado o impasse político em Washington e o aumento do “abismo fiscal”,
agora parece incerto.
Há
50 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, mas porque a linha da
pobreza é tão baixa – US$ 22.350 para uma família de quatro pessoas – esse
número nada significa. Acrescente-se a isso as dezenas de milhões de
estadunidenses de uma categoria chamada “próxima à pobreza”, incluindo as
famílias que tentam viver com menos de US$ 45 mil por ano e ter-se-ão ao menos
30% do país na pobreza.
Assim
que essas pessoas perceberem que não haverá recuperação econômica, que seu
padrão de vida continuará a cair, que foram enganadas, que a esperança no futuro
é uma ilusão, elas se tornarão tão furiosas como os manifestantes da Grécia e da
Espanha ou os militantes de Gaza ou do Afeganistão.
Os
bancos e outras corporações financeiras entregaram trilhões em empréstimos sem
juros do Federal Reserve, enquanto
acumulavam US$ 5 trilhões, em grande parte pilhados do Tesouro dos EUA. Quanto
mais essas disparidade e desigualdade mundiais forem perpetuadas, mais as massas
se revoltarão e mais depressa replicaremos internamente o modelo israelense de
controle doméstico – drones acima de
nossas cabeças, todos os dissidentes criminalizados, equipes SWAT rompendo pelas
portas, força mortal como modo aceitável de subjugação, alimentos usados como
armas e vigilância constante.
Em
Gaza e em outras partes doentes do globo vemos essa
nova configuração de poder.
O
que está acontecendo em Gaza, assim como o que ocorre com pessoas negras em
comunidades marginais nos EUA, são o modelo. As técnicas de controle, sejam elas
aplicadas por israelenses, sejam usadas por unidades de polícia militarizada nas
guerras contra drogas de nossas cidades, sejam empregadas por forças militares
especiais ou por mercenários no Paquistão, no Afeganistão ou no Iraque, são
testadas primeiro e aperfeiçoadas nos fragilizados e nos despossuídos.
Nossa
insensível indiferença ao apelo dos palestinos e das centenas de milhões de
pobres empacotados em favelas urbanas na Ásia ou na África, assim como de nossa
própria subclasse, significa que as injustiças cometidas contra eles serão
cometidas contra nós. Ao falhar com eles, falhamos conosco.
À
medida que o império dos EUA implode, as mais brutais formas de violência
empregadas fora do império começam a migrar de volta para o país. Ao mesmo
tempo, os sistemas internos de governança democrática calcificaram-se.
A
autoridade centralizada está nas mãos de um setor executivo que serve, como
escravo, aos interesses corporativos globais.
A
imprensa e os poderes judiciário e legislativo tornaram-se desdentados e
decorativos.
O
espectro do terrorismo, como em Israel, é usado pelo Estado para desviar
gigantescos gastos para a segurança do país, para a vigilância militar e
interna.
A privacidade é abolida. A dissidência é traição. Os militares, com seu mantra de obediência cega e de força, caracterizam a ética sombria da cultura vasta. A beleza e a verdade são abolidas. A cultura é degradada em besteiras. A vida emocional e intelectual de cidadãs e cidadãos é devastada pelo espetáculo, pelo mau gosto e pela malícia, assim como por montões de analgésicos e narcóticos. A ambição cega, o desejo de poder e uma grotesca vaidade pessoal – exemplificadas por David Petraeus e sua ex-amante – são os motores do progresso.
O conceito de bem comum não faz mais parte do léxico do poder. Este, como a novelista J.M. Coetzee escreve, é a “flor suja da civilização”. É Roma sob Diocleciano. Somos nós. Os impérios, no final, decaem em regimes despóticos, assassinos e corruptos que enfim consomem a si mesmos. E nós, como Israel, agora tossimos sangue.
____________________
Chris
Hedges*,
cuja coluna é publicada às segundas-feiras em Truthdig, passou quase duas
décadas como correspondente internacional na América Central, no Oriente Médio,
na África e nos Bálcãs. Escreveu reportagens em mais de 50 países e trabalhou
para The Christian Science Monitor, National Public Radio, The
Dallas Morning News e The New York Times, para o qual foi
correspondente internacional por 15 anos.
Notas
de rodapé
[1]
Dada a vida que levam, em consequência do bloqueio e dos ataques genocidas de
Israel, os habitantes de Gaza preferem usar a expressão “campo de
extermínio”.
[2]
No original, flout, que também significa caçoar, zombar – termos mais
apropriados ao que Israel e EUA fazem com o direito
internacional.
[3]
Zonas-tampões são terras palestinas que Israel confisca para manter, entre a
linha de fronteira e Gaza (ou as vilas e cidades da Cisjordânia), uma área
vazia, de acesso proibido aos palestinos, cercada e vigiada por soldados
armados.
[4] Ver Karl
Polanyi (em inglês). Embora o trecho citado neste texto seja
interessante, é preciso manter um olhar crítico em Polanyi. Ele falhou
exatamente onde o outro Karl, o Marx, acertou. Como filósofo, Marx foi fundo na
ontologia para entender a formação da riqueza e do capital, ao passo que Polanyi
não fez senão um sobrevoo nessas mesmas questões.
Postado: vila vudu
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