Minhas recentes análises dos levantes árabes e da crise em curso na Tunísia e no Egito receberam abundante comentário crítico. Minha posição sobre os levantes árabes, a história deles e as questões que propõem, está claramente exposta em meu livro Islam and the Arab Awakening. Eventos recentes confirmaram que não errei. Quem queira esclarecimentos, que leia ou releia meu livro. (...)
Ao mesmo tempo, desenvolvi crítica detalhada da polarização dos debates entre secularistas e islamistas, particularmente no Egito e na Tunísia. Meus mais recentes escritos sobre o golpe militar levaram alguns intelectuais e ativistas anti-Mursi a me rotularem como pró-Mursi, pró-Fraternidade Muçulmana e pró-islamistas e a acionar a máquina de propaganda. Como seria bom se as coisas fossem assim tão simples. Mas é impossível, em termos decentes, criticar-me por falta de clareza quanto às ações do governo Mursi e o posicionamento ideológico da Fraternidade Muçulmana.
Já disse uma vez, e repito, mas os apologistas “liberais” do golpe de Estado e os amigos dos militares que fingem que nada ouviram ou nada leram, e que desqualificam os oponentes, que veem como “islamistas” e “terroristas” melhor fariam se prestassem atenção à substância e tratassem de responder a várias perguntas chaves.
Os homens e mulheres que mantiveram as manifestações de rua por mais de cinco semanas estão sendo agora apresentados como “pró-Mursi,” e como membros da Fraternidade Muçulmana. É categorização tão falsa quanto tendenciosa: uma manta de mentiras cerradamente tecida pela imprensa oficial e disseminada por 80% da imprensa-empresa ocidental e suas agências-empresas noticiosas, que usam sempre as mesmas palavras, idênticas, para descrever as massivas manifestações de rua.
De fato, os manifestantes carregam a bandeira da oposição ao golpe de Estado. Ali estão homens e mulheres que não são membros da Fraternidade Muçulmana, que não são, nem salafistas, nem islamistas. Entre eles há muitos jovens blogueiros, secularistas e coptas.
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A bandeira egípcia está manchada pelo sangue de seu povo |
O exército egípcio jamais saiu da cena política. Sua estratégia de repressão explica-se pela preocupação com preservar seus interesses políticos, econômicos e financeiros, e pelos laços íntimos com o governo dos EUA. Algumas capitais europeias – e Israel, é claro – claramente apreciam a estratégia dos militares.
A condenação tímida que veio do ocidente, as palavras dissimuladas e insuficientes do presidente Barack Obama (cancelou manobras militares, confirmou a ajuda financeira e implicitamente manifestou apoio ao golpe de Estado), somada ao bombardeio por jornais, jornalistas e televisões, garantiram carta branca aos militares para deflagrarem repressão sem limite, sob o disfarce de um recém declarado “estado de emergência”.
O ataque apenas começou; o Egito enfrentará ainda mais mortes, tortura e prisões em massa.
Aliás, nenhuma novidade. A imprensa oficial distribui mentiras e manipula a informação: são as mesmas velhas táticas de sempre. A polícia e as forças armadas alegam que estariam agindo em legítima defesa: mas usam munição viva contra manifestantes e o número de mortos é sistematicamente subestimado.
Mesquitas para onde estavam sendo levados os corpos de manifestantes assassinados foram queimadas, para destruir provas. Outras mesquitas, como al-Iman, foram cercadas, no momento em que ali se realizavam velórios.
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Velório de mortos assassinados pelo exército na Mesquita al-Iman em 18/8/2013 |
Para liberar os corpos, famílias são obrigadas a aceitar documentos que atestam que a causa da morte seria suicídio, ou que a morte ocorreu em outra data. Novos horrores, velhos métodos.
Não surpreende que surjam “notícias” de que o exército teria encontrado depósitos de armas – que são devidamente filmados, fotografados e “exibidos” em todo o mundo. São armas que os manifestantes, sempre pacíficos, depois de seis semanas de manifestações sempre sob ameaça de intervenção militar e ameaçados de ataque, só não usaram porque não tiveram tempo...
Também horrível, a estratégia de incendiar igrejas faz lembrar o que faziam predecessores de al-Sisi: jogar os egípcios uns contra outros e apresentar “os terroristas islamistas” como inimigos dos coptas. Assim matam dois coelhos com uma cajadada: justificam a repressão, ao mesmo tempo em que seduzem corações e mentes no ocidente.
Os que se opõem ao golpe são apresentados como estúpidos: não violentos e disciplinados por semanas a fio, mesmo depois do massacre de 8 de julho, repentinamente se tornam violentíssimos, exatamente quando os militares precisavam de violência? A quem tentam enganar?
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Igrejas são incendiadas pela polícia secreta de al-Sisi disfarçados de Irmãos da Fraternidade Nuçulmana |
A questão central foi e é liberdade e democracia para o povo egípcio. O que se vê hoje no Egito é uma farsa e um horror. O país está agora à mercê das Forças Armadas. Agora, o Egito enfrentará execuções sumárias, prisões arbitrárias e mentiras, a partir do mais alto nível do estado.
Os generais contam com integral apoio do Ocidente, dos EUA e de Israel. Essa é a única realidade.
Todos os que, em seu ódio visceral aos islamistas, apóiam hoje os militares e a polícia que matam e reprimem algum dia terão de responder por suas escolhas. Terão também de exibir-nos suas análises, seu programa político “democrático” rabiscado na penumbra da caserna, no coração obscuro da corrupção, no olho do furacão em que hoje se debate, à deriva, todo o Oriente Médio.
A responsabilidade deles é imensa, muito mais vasta do que o gosto amargo das palavras que usam para encorajar e justificar a repressão violenta contra cidadãos desarmados.
Malditos “liberais”, “progressistas” patéticos.
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[*] Tariq Ramadan (árabe: رمضان); nasceu em 26 de agosto de 1962); é escritor e acadêmico suíço. Também é um Professor de Estudos Islâmicos Contemporâneos na Faculdade de Estudos Orientais da Universidade de Oxford (Instituto Oriental, Faculdade de St. Antony). Leciona na Faculdade de Teologia de Oxford; professor visitante na Faculdade de Estudos Islâmicos no Qatar e Diretor do Centro de Pesquisa de Legislação Islâmica e Ética (CILE) (Doha, Qatar). Defende o estudo e a re-interpretação de textos islâmicos e enfatiza a natureza heterogênea dos muçulmanos ocidentais.
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