O texto abaixo é um excelente trabalho de pesquisa onde o autor demonstra com dados estatísticos que a população da Europa está muito longe de ser vítima do terrorismo e o uso político do tema como justificativas para a militarização que afeta a população mais pobre do planeta. (Nota do Blog)
Marcelo
Zero
I.
Os recentes e trágicos atentados
terroristas cometidos na França voltaram a colocar em debate, no chamado
Ocidente e no Brasil, a questão do terrorismo.
II.
Entretanto,
é fácil constatar que tal debate está muito centrado no terrorismo que afeta
eventualmente países ocidentais. Também é visível que se desenvolveu um senso comum em torno do tema, o qual impede
ou distorce análises mais abrangentes, equilibradas e realistas sobre o
fenômeno.
III.
Com
efeito, a discussão sobre esse tópico normalmente só ocorre na mídia e no
cenário político brasileiro quando há um atentado na Europa ou nos EUA. Além
disso, o terrorismo, no debate midiático, aparece correlacionado a “governos
hostis” ao Ocidente e à migração de países islâmicos e árabes para a Europa e
os EUA. Esse “senso comum” tende a justificar intervenções militares no Oriente
Médio e as atuais tentativas de impor limites à imigração de populações que
foram afetadas por conflitos sangrentos naquela região, como a que ocorre no
caso da Síria.
IV.
Pior
ainda, esse “senso comum” tende a tornar invisível a ocorrência de terrorismo
em outras regiões do planeta, bem como a relação que há entre essas formas
ubíquas de terrorismo e as políticas unilaterais e militaristas que o Ocidente
desenvolve para supostamente enfrentar o problema.
V.
Pois
bem, os dados mais recentes do Global Terrorism
Index, realizado pelo Institute for
Economics and Peace (IEP), think
thank que se dedica a mensurar e analisar o terrorismo em todo o mundo,
mostram uma realidade bem mais complexa que o que deixa entrever essa visão
estreita do “senso comum” sobre o assunto.
VI.
Em
primeiro lugar, as informações do último relatório do IEP, referentes ao ano de
2014, demonstram que o Ocidente é comparativamente muito pouco afetado pelo
fenômeno do terrorismo.
Gráfico I
Elaboração
Própria. Fonte IEP
VII.
O gráfico é bastante eloquente. Das
32.685 mortes por terrorismo ocorridas em 2014, a imensa maioria (97,3%) ocorreu no Oriente Médio e
Magreb, na África Subsaariana e na Ásia. Europa e EUA são afetados marginal e
ocasionalmente. Mesmo se incluíssemos os recentes atentados de Paris no
cômputo, eles não fariam diferença alguma, tamanha a amplitude das mortes por
terrorismo ocorridas em outras regiões do globo. Na realidade, após o 11 de setembro,
a Europa e os EUA somaram, em vítimas fatais do terrorismo, um número
relativamente pequeno, apesar do grande alarde que tais atentados provocam na
mídia ocidental e mundial. Se excluirmos
esse grande evento (o 11 de setembro), as mortes por terrorismo desde 2000 no
Ocidente correspondem a apenas 0,5%
do total das vítimas de atentados terroristas. Mesmo incluindo o 11 de
setembro, tal índice alcança somente 2,6%
do total.
VIII.
Ademais, desde 2006 que 70% das vítimas
fatais por terrorismo no Ocidente não são causadas pelo terrorismo de origem
religiosa, como se imagina, mas sim pelo chamado terrorismo lone wolf (lobo solitário), como foi o
caso ocorrido na Noruega. Esse tipo de terrorismo está muito vinculado ao
extremismo de extrema direita e ao nacionalismo, fenômenos que vêm crescendo na
Europa. Na Ucrânia, aliás, a imensa maioria das vítimas fatais de terrorismo em
2014 foi causada por grupos de extrema direita que atuam na região separatista
de Donetsk, como a organização neonazista Right
Sector.
Gráfico
2
Elaboração
Própria. Fonte IEP
IX.
Quando se decompõem as informações por
países, como no Gráfico 2, verifica-se que as nações que mais sofreram com
terrorismo em 2014 são aquelas que estão, em maior ou menor grau, dilaceradas
por graves conflitos internos. A bem da verdade, nos últimos 25 anos, 88% dos atentados terroristas ocorreram
em países que tinham graves conflitos internos. Observe-se que, no caso da
Síria e da Líbia, não estão incluídos no cálculo das vítimas os mortos das
guerras civis que lá se desenvolvem. Nos países desenvolvidos da OCDE, contudo,
as motivações para a prática do terrorismo não estão vinculadas a conflitos
internos, mas a outros fatores, como alto desemprego entre os jovens, descrença
nas instituições democráticas, crise econômica, etc.
Gráfico
3
Elaboração
Própria. Fonte IEP
X.
O Gráfico 3 confirma essa avaliação. Em
2014, os cinco países que apresentaram maior crescimento de vítimas fatais de
terrorismo foram justamente aqueles que vêm passando por um agravamento de seus
conflitos. No caso do Iraque, do Afeganistão, da Síria, e da própria Ucrânia
tal agravamento deve-se, em boa parte, às intervenções políticas e militares
feitas por potências ocidentais.
Gráfico
4
Elaboração
Própria. Fonte IEP
XI.
As informações contidas no Gráfico 4 são
muito elucidativas a esse respeito. Elas indicam uma forte correlação entre o
crescimento do terrorismo em escala global e as intervenções militares
realizadas, em tese, para coibir o fenômeno. Em 2003, quando se inicia a
invasão do Iraque, sob o falso pretexto de neutralizar armas de destruição em
massa, implantar a democracia e combater o terrorismo, tínhamos cerca de 3.000
mortes por terrorismo em todo o mundo. À medida que tal intervenção cresce, o
número de mortes aumenta até cerca de 11 mil, em 2007. A partir de aí há uma
discreta queda até 2011, quando se inicia a guerra civil da Síria. Desde aquele
ano, há uma evolução exponencial do terrorismo, obviamente vinculada ao apoio
que o Ocidente deu e ainda dá aos grupos terroristas que lutam contra o governo
Assad, bem como ao colapso dos Estados Nacionais da Síria e do Iraque. O Estado Islâmico, nascido no Iraque ocupado,
aproveitou-se desse apoio e conseguiu dominar um amplo território que inclui o
Centro e o Oeste do Iraque e o Leste da Síria, regiões de maioria sunita. Com o
domínio desse território e com a venda de seu petróleo via Turquia, o Estado
Islâmico converteu-se na grande usina de propagação do terrorismo
fundamentalista sunita no mundo.
XII.
Em 2014, ocorreu um aumento de 80%
no número de mortes por terrorismo. Esse aumento drástico tem muita relação com
o Estado Islâmico e seu principal aliado na África, o Boko Haram. Apenas esses
dois grupos foram responsáveis por 40% das mortes por terrorismo em todo o
mundo. Saliente-se que o Boko Haram reconheceu, em março de 2015, a autoridade
do Califa dos Muçulmanos,
Al-Baghdadi, líder do Estado Islâmico.
XIII.
O crescimento desses dois grupos
também vem mudando o perfil dos atentados. É que essas organizações têm
preferência pelos atentados contra civis comuns, como se viu no caso de Paris.
Os atentados contra civis aumentaram 172%,
entre 2013 e 2014. Hoje, tal tipo de atentados já representa 47% do total, como
se observa no Gráfico 5.
Gráfico 5
Elaboração
Própria. Fonte IEP
XIV.
Outro dado interessante do relatório do
IEP tange à participação de estrangeiros no Estado Islâmico e em outros grupos
terroristas que atuam no Iraque e na Síria. Como era de esperar, cerca de 80%
desses estrangeiros provêm de países muçulmanos vizinhos ou próximos, como
Jordânia, Líbano, Turquia, Arábia Saudita, Egito, Líbia, Tunísia, etc. Contudo,
há cerca de 20% que provêm de outras regiões. Pois bem, em sua maioria,
esses outros estrangeiros vêm da Europa. Nesse subconjunto, o primeiro país
exportador de voluntários para o terrorismo é a Rússia, com mais de 2.000
combatentes provenientes da região do Cáucaso, seguida da França, com ao redor de
1.800 voluntários, segundo as estimativas mais pessimistas. Alemanha e Reino
Unido contribuiriam com cerca de 700 militantes cada.
XV.
Essa informação contradiz o “senso comum”
ocidental, que considera que os imigrantes dos países afetados pelos conflitos
recentes, como os da Síria, são terroristas em potencial. Na realidade, o
perigo reside mais na migração em sentido contrário. É a Europa que exporta
terroristas para a Síria e o Iraque.
XVI.
Por último, cabe destacar brevemente a
comparação que o relatório faz entre a criminalidade comum e o terrorismo.
Gráfico 6
Elaboração
Própria. Fonte IEP
XVII.
Como se vê, os homicídios comuns são 13
vezes mais prevalentes que os homicídios provocados pelo terrorismo. No caso da
América Latina, região com índices muito elevados de criminalidade comum, essa
discrepância é bem maior.
XVIII.
No caso específico do Brasil, a
discrepância é descomunal. Não temos terrorismo estrito senso, mas temos muita
violência urbana, inclusive a cometida por órgãos policiais contra a população
civil, especialmente contra jovens negros e pobres, vítimas de um genocídio
silencioso e invisível.
XIX.
Essa violência “naturalizada” e
cotidiana, uma espécie de terrorismo de Estado, não desperta a comoção que
costumam provocar atentados terroristas no Ocidente. Mas é com esse terrorismo
invisível que devemos mais nos preocupar.
http://brasildebate.com.br/o-lado-invisivel-do-terrorismo/
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