segunda-feira, 30 de agosto de 2021

“A História também pode se repetir como tragédia” UMA ENTREVISTA COM AILTON KRENAK

 Ailton Krenak, um dos principais intelectuais indígenas no país, conversou com a Jacobin sobre catástrofe climática, crise do capitalismo, surgimento do marxismo e a possibilidade de imaginarmos outros mundos por meio da tradição de resiliência de todos os povos minoritários no mundo.

Krenak apresenta a publicação durante a Semana de Ciências Sociais na USP|Gustavo Rubio-ISA.

ENTREVISTADO POR
Hugo Albuquerque & Jean Tible  - 26/03/20

Em dias catastróficos como estes, enquanto o Brasil e o mundo ardem com a febre do coronavírus, mas também com toda realidade socioeconômica inclemente, que não permite à humanidade e o mundo descansar e se curar, publicamos a entrevista inédita concedida por Ailton Krenak para Jean Tible e Hugo Albuquerque.

Em 1987, durante a Assembleia Constituinte, um gesto chamou a atenção do mundo e entrou para a História: Ailton Krenak foi à tribuna discursar e enquanto falava, ele pintava seu rosto com a tinta negra de jenipapo, que expressa o luto para o seu povo, para denunciar o descaso dos deputados constituintes com os indígenas, os quais foram perseguidos, dizimados e tiveram suas terras tomadas e privatizadas pelo empreendimento colonial branco, desaguando em um Estado genocida e explorador.

Ailton, com aquele gesto poderoso, decisivo para a aprovação do sistema de proteção ao índio, questionava a opressão de séculos contra os indígenas e, sobretudo, de seu povo, os Krenak, que quase foi totalmente dizimado no século XX, após sofrerem séculos com uma repressão particularmente cruel, mesmo para os padrões coloniais luso-brasileiros.

Os Krenak — “cabeça da terra” ou “cabeça na terra”, em virtude de seus ritos e de sua relação com a terra e, também, de um importante líder –, como o próprio Ailton sublinha, já testemunharam a história com muitos outros nomes, mas ele corresponde a um número de famílias e grupos denominados anteriormente como “aimorés” — pela forma como os tupi os chamavam — ou, mais comumente, pela denominação hostilizante e pejorativa dada pelos brancos durante o período colonial e início da história brasileira independente: “botocudos”.

Importante lembrar a lição de Eduardo Viveiros de Castro sobre a distinção entre as “as palavras ‘índio’ e ‘indígena’, que muitos talvez pensem ser sinônimos, ou que ‘índio’ seja só uma forma abreviada de ‘indígena’. Mas não é. (…) oram chamados de ‘índios’ por conta do famoso equívoco dos invasores que, ao aportarem na América, pensavam ter chegado na Índia. ‘Indígena’, por outro lado, é uma palavra muito antiga, sem nada de ‘indiana’ nela; significa ‘gerado dentro da terra que lhe é própria, originário da terra em que vive’. Há povos indígenas no Brasil, na África, na Ásia, na Oceania, e até mesmo na Europa. O antônimo de ‘indígena’ é ‘alienígena’, ao passo que o antônimo de índio, no Brasil, é ‘branco’, ou melhor, as muitas palavras das mais de 250 línguas índias faladas dentro do território brasileiro que se costumam traduzir em português por ‘branco’, mas que se refere a todas aquelas pessoas e instituições que não são índias”.

O índio como invenção do aparato colonial é sucedido pela retratação de outros povos de maneiras ofensivas, para legitimar processos genocidas: quem hoje chamamos de povo Krenak eram chamados de temíveis “botocudos” serviu para motivar campanhas de extermínios ao longo do tempo: quando “Dom João VI chega ao Brasil em 1808, ele foi convencido pelos colonos a fazer a guerra de extermínio contra os ‘botocudos’”.

Habitantes da região do médio Rio Doce em Minas Gerais, rio assassinado pelo rompimento da barragem de Mariana em 2015, os Krenak foram jogados em um reformatório para serem militarizados e servirem como projeto piloto da infame guarda indígena durante a Ditadura Militar.

Hoje, Ailton Krenak sublinha que a volta dos militares ao poder demonstra que a “História pode se repetir como tragédia” e que, antevendo o que resultaria na crise atual, “a minha observação da História é que ela é cheia de surpresas. Quando algumas nações parecem estar surfando no bem-estar, vem uma tragédia e muda tudo. E lembra que “ao mesmo tempo que nós, os indígenas, somos a parte da humanidade pronta a desaparecer, nós também somos a parte da humanidade que criou anticorpos para entender como habitar outros mundos. Quem sabe, quem sempre esteve com o dedo no gatilho para fazer gente desaparecer não acabe desaparecendo antes da gente?”. Confira a entrevista completa.

Como está a luta dos Krenak hoje? 

AK - Eu me lembro que na década de 1970, usávamos um termo para identificar situações como aquela que havia entre os indígenas e o Estado brasileiro: questão. Assim como havia a questão palestina e a questão árabe também havia a questão indígena. Com a chegada da década de 1990 e junto com o “fim da História” também veio o fim da questão, inclusive da questão indígena. Para nós, no entanto, nunca houve o fim dessa questão. Os Krenak e a luta hoje são a persistência da questão indígena. 

O pequeno agrupamento de pessoas que chegou ao século XXI com o nome de “povo Krenak”, já passou por inúmeras transfigurações, no sentido que dizia Darcy Ribeiro: essa gente que ele chamava de Povos-Testemunhos, por estar aqui muito antes dos europeus. Então nesse tempo antes do europeu, essa gente olhou e testemunhou a História nos últimos séculos sob vários outros nomes.

O nome que eles carregaram até o século XIX era o de “botocudos”, um apelido pejorativo. Quando Dom João VI chega ao Brasil em 1808, ele foi convencido pelos colonos a fazer a guerra de extermínio contra os “botocudos”, que, na verdade, não era um único povo, mas sim vários grupos de famílias linguísticas parecidas. Botoque é tampa de vaso, de barril. E eles ficaram com essa denominação hostilizante, a qual serviu para justificar uma agressão particularmente mais dura, ao longo do século XIX,  por parte do Estado brasileiro. 

Quando ocorre a virada do século XIX para o XX, o impacto das viagens de naturalistas europeus como Georg Heinrich von Langsdorff, que tiveram contato com os “botocudos”, começa a ressoar junto a vanguarda europeia e narrar algo mais próximo da realidade histórica: “encontramos um povo [os Krenak] segregado, hostilizado, cercado em acampamentos por colonos totalmente enlouquecidos, que querem tomar suas terras, enquanto roubam e vendem suas crianças Krenak no mercado, invadem e queimam suas aldeias matando-os”.

Os naturalistas mostram um povo em fuga no contexto de uma invasão constante. Isso caracterizou a questão indígena no século XX. Essa questão atravessou a vida dessas famílias até que elas passaram a ser reconhecidas como “povo Krenak”. Mas isso não fez cessar a violência sobre essas famílias, uma agressão cujo objetivo sempre foi a extinção mesmo. 

Na década de 1950, quando eu nasci, havia sessenta e poucos indivíduos que se identificavam como parte dessas famílias. Eram quatro matriarcas e suas crias, pois, os homens tinham sido todos exterminados. Apenas quatro mulheres com seus filhos e noras enfrentando um mundo que queria acabar com elas.

São essas pessoas que vão enfrentar a experiência da ditadura militar nos anos 1960-1970, quando foi criado, inclusive, um “reformatório” para essas famílias: o reformatório Krenak.

Foi um processo programado para extinção de um punhado de gente, só porque eles eram portadores de uma memória perigosa. Como o sistema, esse demônio, consegue farejar as memórias que ele quer excluir? 

Do mesmo modo que o índio é inventado por esse sistema, os botocudos também são inventados. E aí chegamos a 1964. E como foi de lá até hoje?

AK - Sim, exatamente. Primeiramente, precisamos atravessar um túnel que inclui o que o Brasil viveu de 1964 até 1985, a ditadura militar. Aquele período pesado, os anos chumbo, foi um período cinzento para nós. Ao mesmo tempo que era um momento de muita repressão, também foi uma época na qual emergiu de forma mais sólida a questão indígena, que deixou de ser um assunto local e passou a ser uma temática mundial. 

Organismos como a Survival International, a Anistia Internacional e várias outras agências de direitos humanos começaram a reconhecer que o Brasil estava praticando genocídio contra os povos indígenas. 

Nessa lista, estavam, dentre os povos ameaçados de extinção, as famílias Krenak. Naquele período, a terra indígena no médio Rio Doce na qual as famílias Krenak estavam, na verdade, confinadas pelo Estado, foi assaltada por fazendeiros e grileiros. Esses posseiros ilegais agiam em conluio com os órgãos estatais durante a ditadura e, a rigor, tomaram a terra dos índios. 

Havia uma empresa de colonização em Minas Gerais chamada Rural Minas, uma companhia do governo do Estado de Minas anterior ao próprio Incra [Instituto Nacional de Colonização e de Reforma Agrária, criado em 1970] que servia às questões fundiárias. Essa empresa, a partir de 1967, deu títulos de propriedade aos invasores, desfazendo, na prática, o ato que criou a terra indígena dos Krenak, e as famílias que tentaram permanecer lá eram arrancadas — e muitas dessas pessoas se tornaram prisioneiras no reformatório Krenak.

Por sinal, o reformatório Krenak, para além de ser esse depósito de famílias desalojadas do médio Rio Doce, tinha uma proposta de militarização, recrutando os jovens indígenas para se tornarem soldados. Eles criaram uma coisa chamada “guarda rural indígena”. O piloto dessa guarda rural eram os Krenak. Esse caso mineiro serviu de embrião para o que foi feito na Amazônia.

Esses indígenas eram submetidos a treinamento militar, eram torturados, esmagados em sua identidade, ganhavam uma farda, ficavam sob a disciplina militar e eram induzidos a operar como vigias de seus próprios parentes. Eles reprimiam seus parentes a ter um comportamento adequado frente a Comissão de Assuntos Indígenas do governo. 

Até essa época havia o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado pelo marechal Rondon no início do século XX. Enquanto o marechal estava vivo, ele imprimia ordens claras sobre o órgão, mas quando ele ficou mais velho, o SPI se degenerou. Ele se tornou já ali um órgão de delegados federais que escravizavam e exploravam os indígenas.

As comunidades indígenas que viviam fora do controle restrito do SPI tinham alguma autonomia. Eram, é verdade, perseguidas, mas como estavam na floresta havia sempre uma rota de fuga.

Então os povos indígenas estiveram nos últimos séculos enfrentando uma questão. Que é o sentido que essa palavra carrega. Que é uma espécie de enigma. Questão é uma espécie de paradigma que não consegue se desvelar, uma espécie de tranca: a incapacidade de superar uma crise nas relações onde quem tem o poder de decidir o jogo é o Estado, que é uma entidade sobrenatural, que tem o direito de deixar viver ou matar. O Estado pode matar que não é crime. O Estado é a única entidade que pode fazer a guerra.

O Estado detém o monopólio do mal.

AK - O Estado serve para vigiar e punir como disse Michel Foucault.

A questão indígena foi eclipsada e a lua é algo muito caro à sua cultura, com o chamado “fim da História”. Como enxergar o paradoxo de vocês terem arrancado do Estado esse arbítrio absoluto sobre os indígenas na Constituição de 1988 justo nesse momento?

AK - Eu vejo isso assustado como um truque desses fenômenos da história. E pensar, por exemplo, que a ideia de que esses povos originários não teriam história, que esses povos são fora da história. Toda a literatura e talvez até os Tristes Trópicos de Claude Lévi-Strauss, que ele publicou em 1955, dizia que os índios não têm história. 

Lévi-Strauss deu um cutucão nos outros antropólogos ao dizer que: “é claro que eles têm história, mas outra história”. Surge uma chave entre o entendimento da História e as memórias que esses povos carregam, que são o guia de sua continuidade e de sua potência de reprodução cultural.  

A captura daquele momento que a questão indígena se comunica com o sentido mais amplo de uma história que estava no fim, mas ao mesmo tempo misturava tudo. O anúncio da globalização colocou todo mundo num liquidificador gigante: não faz mais diferença se você está na Turquia, na África ou na América do Sul. A banalização do mal sobre a vida de povos de variados lugares ganha o mesmo nivelamento, mas também um ponto em comum. 

É por isso que começam a se constituir espaços de discussão, fóruns e tribunais internacionais, como o Tribunal Internacional Bertrand Russel, que reconheceu que o Brasil cometeu genocídio contra seus indígenas, graças a denúncia do nosso primeiro deputado indígena Mário Juruna em 1980. A situação se escancarou para o mundo inteiro. Revelando outras ocultações, a pior delas é de que “não haveria mais indígena no Brasil”.

O Eduardo Viveiros de Castro gosta de exemplificar esse período com aquele episódio do embaixador brasileiro, que estava em Paris, quando Lévi-Strauss estava preparando sua primeira viagem ao Brasil. Eis que o embaixador pergunta o que ele viria fazer no Brasil e ele responde: “eu vou conhecer os indígenas, entender melhor a situação dele”. O diplomata responde: “ah que pena, você vai ter de fazer outra coisa, pois acabaram os índios no Brasil”. 

Lévi-Strauss veio mesmo assim e deu no que deu: a chave abriu a tranca e mostrou que não apenas os indígenas não tinham acabado no Brasil como, também, demonstrou que o Brasil não tinha conseguido acabar com os indígenas.

A constatação de que o Estado brasileiro tentou acabar com os indígenas, mas não conseguiu, gerou uma enorme discussão: o que restou dos indígenas no Brasil se misturou com a realidade de outros povos minoritários no mundo, dando abertura para iniciativas como a Declaração Internacional dos Direitos dos Povos Indígenas do Mundo de 2007.

A gente saiu do trato jurídico com o Estado brasileiro para um trato jurídico internacional. A questão que estava na rota do desaparecimento manifestou-se de uma maneira tão surpreende que interveio a história mundial. E os indígenas que eram um povo sem História,, voltou à cena, de uma forma tão determinada, como se tivesse reconhecendo seu destino de ser testemunha da sua própria história, mas também testemunha da história do branco.

Hoje, eu acredito que no mundo inteiro, os povos indígenas da Nova Zelândia, Austrália, África, Brasil e Canadá são as testemunhas mais duras que os Estados nacionais colonialistas têm diante de si. Se a gente entender os indígenas não como a invenção do português, mas com uma constatação de que grande parte da humanidade foi excluída da narrativa, todos os excluídos ficam na condição de indígenas. 

Talvez aquilo que tem sido mencionado como devir-índio seja a ideia mais ampla que inclui todos aqueles que não fazem parte do trato do Estado. Que não são constituídos dentro do contrato social dos Estados nacionais, pois, transbordam essas beiradas para outras maneiras de estar no mundo. Isso possibilita aquilo que a gente chama de cosmovisão: e isso está para além da interpretação geográfica ou geopolítica do mundo, porque estabelece rotas de contato com outras esferas. Não só com a ideia de um continente ou de um país ou um planeta, que são rotas alimentadas por uma cosmovisão.

A terra, enfim, é um dos nossos sítios, mas a capacidade de recriar a vida que essas memórias e esses povos tão plurais têm no mundo inteiro habitam também outras dimensões. Suas narrativas, sua expressão para além da circunstância material da vida, criam mundos, subjetividades. E uma potência subjetiva tão maravilhosa que ela quase que admite que se esse mundo acabar, essa humanidade que nós estamos anunciando, ela é capaz de recriar mundos para si. Mas ela sempre foi excluída do mundo.

Uma vez como tragédia, a outra como farsa. Esses militares que exterminaram, que confinaram vocês em campos de concentração, militarizando-os, colocando Krenaks contra Krenaks, estão de volta ao poder. Como é para vocês isso?

AK - A História pode se repetir como tragédia. Eu tenho dificuldades de ler essas manobras. Eu tenho dificuldades de comparar esses períodos e fazer uma leitura sobre o que vem, pois, o imprevisto tem uma capacidade de intervir na nossa experiência vivida, que faz a gente suspeitar disso que seria um futuro imediato e próximo.

Mas pensar que o teremos pela frente uma farsa pode ser um erro. Se nós formos informados que a História não se repete, ou se repete como farsa, nós podemos cair num engano e sermos surpreendidos por uma tragédia. Se a gente olhar a História no final do século XX, ver o que foi a transição entre a polaridade capitalismo vs comunismo, queda do Muro de Berlim, União Europeia para, agora, cair em um momento no qual ocorre o fim do trato que russos e norte-americanos fizeram, quanto à mitigação de suas hostilidades mútuas, me parece que não estamos diante de uma farsa, mas de uma tragédia muito mais ampla e grave do que a gente teve no século XX.

Eu suspeito muito desse tempo que nós estamos vivendo. Eu estou mais desconfiado que o Guimarães Rosa pelo que vem pela frente. Ele sempre alerta a gente para não ficarmos confiantes demais no que está vindo. A cada instante pode abrir diante da gente um abismo. Não é para a gente ficar paranoico diante de um mundo em parafuso, mas é para ficar alerta feito um escoteiro sabendo que pode aparecer de qualquer canto da História uma monstruosidade.

A minha observação da História é que ela é cheia de surpresas. Quando algumas nações parecem estar surfando no bem-estar, vem uma tragédia e muda tudo. Seja com o aparato das guerras seja aquilo que é atribuído à natureza. Estamos diante de uma monumental tragédia climática. Quando chamamos ela de climática, estamos reduzindo num termo coisas que têm um desdobramentos que nem conseguimos sequer relacionar. 

Isso afeta a sobrevivência humana, tanto no sentido do suprimento de nossas necessidades de abrigo, alimentação e cuidado, onde todos nós, não importa de que lugar você esteja, estamos na mesma canoa. Podemos dizer que a canoa pode afundar, mas tem uma parte que está blindada, pensa que está ou pelo menos vai lutar para continuar assim.

Quando pensamos nos povos minoritários, até nisso temos o risco do equívoco. Pois, esses povos depois que a ONU convocou a Declaração Internacional dos Direitos dos Povos Indígenas concluiu que tem uma população indígena estimada no planeta hoje de 400 milhões, o que não é pouco. 

Mesmo considerando algum equívoco ou manipulação nessas estatísticas, há uma boa parte da população planetária que está vulnerável, do ponto de vista de todas as relações institucionais, os que as torna as vítimas em potencial de uma catástrofe ambiental ou política.

Assim, quando atinamos com essa ideia de vulnerabilidade, ficamos diante de uma equação muito curiosa: porque ao mesmo tempo que nós, os indígenas, somos a parte da humanidade pronta a desaparecer, nós também somos a parte da humanidade que criou anticorpos para entender como habitar outros mundos. Quem sabe, quem sempre esteve com o dedo no gatilho para fazer gente desaparecer não acabe desaparecendo antes da gente?

Com alguma sorte sim. E esse intermezzo democrático faz algum sentido para os Krenak?

AK - O pacto colonial só serve para ele mesmo. Ele não abre perspectiva com o mundo dos excluídos. Ele só serve para si mesmo como uma autoajuda. As experiências controladas de democracia no mundo, elas são só isso mesmo: experiências controladas. Elas são eventos que se expandem para além dos limites cogitados pelo capitalismo. 

As corporações, já faz muito tempo, capturaram esse lugar de assembleia, de decisão sobre como a governança do mundo será feita e, assim, passaram a nomear meros gerentes. Esses caras que ocupam os mandatos de presidente e primeiro-ministro, em diferentes lugares do mundo, são, em geral, ex-CEOs ou gerentes de uma dessas corporações. Então, isso é uma escolinha. Eles se preparam para dar um próximo passo para integrar a vida política e social dos povos de acordo com o programa de suas corporações. 

Das minhas leituras de alguma produção dos pensadores ocidentais eu, criticamente, entendo que eles estão dando voltas em torno dessa mesma questão: os limites dessa liberdade que o mundo ocidental concede aos povos. Os eventos da História comprovam isso.

Enquanto foi interessante para as potências europeias ter escravidão no mundo, a periferia era o lugar dessa produção de escravos. Tinha uma parcela da humanidade que estava totalmente excluída de tudo, inclusive de sua própria humanidade, reduzidos a mera peças num jogo. 

Quando o ocidente decidiu abrir mais um círculo, mais uma camada de circulação, ele aliviou na questão da escravidão para transformar essas pessoas em clientes e trabalhadores. E o mundo do trabalho se expandiu para que aquela gente que era escrava agora pudesse virar “classe trabalhadora”.

Foi isso que o marxismo descobriu: aquela gente que veio do mundo sem direito algum e agora eram convertidos em trabalhadores, e que podia aspirar uma participação ativa num mundo com igualdade. Como se você estivesse pregando uma nova religião para um mundo pagão, que ansiava um novo credo. Então tivemos uma engajamento enorme no mundo inteiro de gente que buscou ampliar os espaços de autonomia e liberdade dessas relações.

As crises dessas relações ficou tão aguda, que ela implodiu por dentro: o mundo do trabalho está implodido, por uma disrupção que gera coisas como o empreendedorismo. É uma reinvenção do sistema para criar uma nova válvula para esses corpos em movimento poderem seguir a experiência, saturada, de um planeta superpopuloso, que, se essas pessoas não tiverem um programa para rodar, elas vão entrar em colapso. Então precisa sempre abrir uma janela para daqui mais um pouco. É uma improvisação em cima de improvisação.

Por isso eu questionei a ideia da repetição como farsa. Ninguém controla o próximo episódio. E não temos um número de pessoas, em quantidade suficiente, interessadas e preocupadas em pensar alternativas. Nós perdemos a capacidade de produzir pessoas com essa qualidade. Nós estamos nos tornando um mundo ordinário. 

Eu me atrevo a dizer a dizer que acabou a produção de pensamento sobre o tempo que vivemos, com a potência de interferir no curso da História em que vivemos. Nós não temos mais grandes pensadores, grandes “estadistas” — aquela ideia do “estadista”, que é uma coisa sempre limitada, uma vez que o Estado entrou em colapso faz tempo.

E no fim a sabedoria do diabo não é fingir que não existe? O próprio capital no sentido de desmontar o trabalho como a gente conhecia como forma de controlar melhor.

AK - É, exatamente, fingir que não existe e deixar o circo pegar fogo.

Voltando aos tempos atuais, os Krenak depois do ecocídio do Rio Doce pelo rompimento da barragem de Marina. Como está sendo a resistência dos Krenak neste instante?

AK - A resistência nunca muda. Resiste quando são 23 famílias. Resiste quando são 8 famílias. Resiste quando são 100 famílias. Resiste. A célula tem a capacidade de reproduzir. Enquanto ela tem capacidade de se reproduzir com qualidade, ela sempre vai contrariar essa tendência de entropia, de desaparecimento. Ela vai criar e recriar mundo.

É como se nós fossemos chapados por eventos negativos recorrentes. Isso te torna muito desconfiado em relação ao futuro. Mas como também temos uma matriz cultural fundada numa outra perspectiva, na qual o futuro não é amanhã, cresce também a resistência — e eu tenho a impressão, que a palavra resiliência talvez seja a melhor palavra para nossa experiência. 

A resiliência não é a mera resistência a um evento em si, mas sim a capacidade interna de se reconfigurar diante do momento. É mais ou menos o que o camaleão faz, quando muda de lugar e luz para se reconfigurar e aumentar a sua potência. 

Estou cada vez mais observando que isso não é uma experiência apenas dos Krenak, mas de muitos povos ao redor do mundo: os curdos, os ciganos e muitos povos de matriz africana pelo mundo — e é provável que a maior parte da população do continente africano vá estar em outras partes, em virtude do complô colonialista.

Para concluir: o que podemos esperar de um futuro que não é o amanhã?

AK - Eu tenho uma dificuldade enorme com aquele molde intelectual de pensar o mundo pelas partes. Precisamos pensar o todo e interiorizar isso como um jeito de estar no mundo, e isso pode ser uma experiência capsular onde a gente admite a nossa natureza de célula, para além e contra todo personalismo.

É também estar atento ao quotidiano. “Todo dia o sol levanta e a gente canta o sol de todo dia, vem a tarde e o dia gora… e a gente chora no cair da tarde…”. E admitir que cantar, sorrir e chorar é o nosso programa. A gente não precisa ficar desestruturado diante do choro. A gente não precisa ficar pirado diante da alegria. A gente pode buscar alguma coisa entre o nascer e o pôr do sol, de uma maneira mais parecida com o que a natureza faz há bilhões de anos. Isso que a gente chama de natureza é uma criação cultural que existe antes de nós, se recria desde sempre e ensina para a gente como podemos fazer para imitá-la. Eu estou interessado em imitar — e não complicar — a natureza.

Postado da : https://jacobin.com.br/2020/03/a-historia-tambem-pode-se-repetir-como-tragedia/?fbclid=IwAR2rHJ2eUsp1w_njcDSpo4kZr37yRH9xZTs7Dfig4RfriTNtvXKtnoIiObM


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