sábado, 24 de novembro de 2012

As elites vão fazer conosco o que fazem com os habitantes de Gaza


Traduzido e comentado por Baby Siqueira Abrão
Comentário da tradutora: Quem me conhece sabe que penso exatamente como Hedges. Infelizmente, não tenho seu talento e meu artigo sobre esse assunto está só na forma de esboço.
É preciso ler este texto para entender por que os sionistas estão pressionando tanto o FSMPL (Fórum Social Mundial pela Palestina Livre)-- trata-se de uma pedra no sapato de quem, como eles, vêm mostrando as garras na América Latina e dominando nossos governos. É preciso ler este texto para saber por que insisto tanto num foco de luta mais amplo, contra o sionismo.
Vamos deixar como está ou vamos reagir?

Gaza é a janela de nossa futura distopia. A crescente divisão entre a elite do mundo e sua miserável massa de humanidade é mantida por meio de uma violência em espiral. Muitas regiões empobrecidas do planeta, que caíram no abismo econômico, começam a assemelhar-se a Gaza, onde 1,6 milhões de palestinos vivem no maior campo de concentração do planeta [1].
Essas zonas de sacrifício, cheias de pessoas deploravelmente pobres, presas em favelas miseráveis ou em aldeias cujas casas têm paredes de barro, cada vez mais vêm sendo sitiadas por cercas eletrônicas, monitoradas por câmeras de vigilância e drones, e rodeadas por guardas de fronteira ou unidades militares que atiram para matar. 
Ilustração: Mr. Fish
Essas distopias de pesadelo se estendem da África subsaariana ao Paquistão e à China. Nesses locais, assassinatos propositais são executados, ataques militares brutais são feitos a pessoas deixadas sem defesa, sem exército, sem marinha e sem força aérea. Todas as tentativas de resistência, embora ineficazes, deparam com a carnificina que caracteriza a moderna indústria da guerra.
No novo cenário global, como nos territórios ocupados por Israel e nos projetos imperialistas dos EUA no Iraque, no Paquistão, na Somália, no Iêmen e no Afeganistão, massacres de milhares de inocentes indefesos são classificados como “guerra”. 
A resistência é denominada provocação, terrorismo ou crime contra a humanidade. O respeito às leis, assim como as mais básicas liberdades civis e o direito à autodeterminação, é uma ficção usada como relações-públicas para aplacar a consciência de quem vive nas zonas de privilégio. 
Prisioneiros são rotineiramente torturados ou “desaparecidos”. A falta de alimentos e de suprimentos médicos são uma tática de controle aceita. Mentiras permeiam as ondas eletromagnéticas (rádios e TVs). Grupos religiosos, raciais e étnicos são demonizados. Chovem mísseis sobre casebres de alvenaria, unidades mecanizadas atiram em aldeões desarmados, canhoneiras esmagam campos de refugiados com bombardeios pesados, e os mortos, incluindo crianças, enfileiram-se em corredores de hospitais aos quais faltam eletricidade e medicamentos.
O colapso iminente da economia internacional, os ataques ao clima e suas consequências, como secas, alagamentos, declínio rápido de safras e aumento no preço dos alimentos estão criando um universo onde o poder se divide entre elites restritas, que têm nas mãos sofisticados instrumentos de morte, e massas enraivecidas. 
As crises vêm incentivando uma guerra de classes que sobrepujará tudo aquilo que Karl Marx poderia ter imaginado. Elas estão construindo um mundo onde a maioria terá fome e viverá com medo, enquanto poucos irão se empanturrar com delícias em fortins protegidos. E mais e mais pessoas serão sacrificadas para manter esse desequilíbrio.
Por ter poder para isso, Israel – assim como os Estados Unidos – desrespeitam [2] o direito internacional para manter na miséria uma população dominada. A presença continuada das forças de ocupação israelenses [nos Territórios Palestinos Ocupados- TPOs] desafia quase cem resoluções do Conselho de Segurança da ONU pedindo sua retirada [dos TPOs]. 
O bloqueio israelense a Gaza, estabelecido em junho de 2007, é uma forma brutal de punição coletiva que viola o artigo 33 da IV Convenção de Genebra, que determina as regras para a “proteção de civis em tempo de guerra”. 
O bloqueio transformou Gaza num pedaço de inferno, num gueto administrado por Israel onde milhares morrem, incluindo os 1,4 mil [são quase 1,5 mil] civis assassinados na incursão israelense de 2008. Com 95% das fábricas fechadas, a indústria palestina virtualmente parou de funcionar. Os restantes 5% operam com 25% a 50% de sua capacidade. Até o setor pesqueiro está moribundo. Israel recusa-se a permitir que os pescadores ultrapassem três milhas náuticas da costa, e dentro desse limite os barcos pesqueiros com frequência são alvo dos tiros israelenses. 
As patrulhas de fronteira israelenses confiscaram 35% das terras cultiváveis de Gaza para criar nelas zonas-tampões [3].
O colapso da infraestrutura e o confisco israelense dos aquíferos fazem com que em muitos campos de refugiados, como Khan Yunis, não haja água corrente. 

A Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados Palestinos (UNRWA, na sigla em inglês) estima que 80% de todos os habitantes de Gaza dependem, atualmente, de ajuda alimentar. E a alegação israelense de autodefesa esconde o fato de que Israel mantém uma ocupação ilegal e viola o direito internacional ao impor a punição coletiva aos palestinos. 
Foi Israel que escolheu aumentar a violência quando, durante uma incursão a Gaza no início do mês, suas forças mataram um garoto de 13 anos. À medida que o mundo se arrebenta, este se torna o novo paradigma: senhores da guerra modernos se inundam com tecnologias e armas aterrorizantes, que matam povos inteiros.
Fizemos [os estadunidenses] o mesmo no Afeganistão, no Iraque, no Paquistão, no Iêmen e na Somália. 
As forças do mercado e os mecanismos militares que protegem essas forças são a única ideologia que governa os Estados industriais e o relacionamento dos seres humanos com o mundo natural. É uma ideologia que resulta em milhões de mortos e outros milhões de desalojados no mundo moderno. E a espantosa/abominável álgebra dessa ideologia significa que essas forças irão, eventualmente, também desencadear-se sobre nós. 
Aqueles que não são úteis para as forças do mercado são considerados descartáveis. Não têm direitos nem legitimidade. Sua existência, seja em Gaza, seja em cidades pós-industriais doentes como Camden, Nova Jersey, é considerada dejeto da eficiência e do progresso. Essas pessoas são vistas como refugo. E como refugo não têm voz nem liberdade, e podem ser extintas ou aprisionadas à vontade. Este é um mundo onde apenas o poder corporativo e o lucro são sagrados. É um mundo de barbárie.
Ao dispor do poder de trabalho humano, o sistema disporia, incidentalmente, da entidade “ser humano” sob os pontos de vista físico, psicológico e moral”, escreveu Karl Polanyi [4] em The Great Transformation [A grande transformação].

E continua:
Privados da cobertura protetora de instituições culturais, os seres humanos pereceriam diante dos efeitos da exposição social; morreriam como vítimas de deslocamentos sociais agudos em consequência do vício, do crime e da fome.
A natureza seria reduzida a seus elementos, com vizinhanças e paisagens violadas, rios poluídos, segurança militar ameaçada, poder de produzir alimentos e matéria prima destruído.
Finalmente, a administração do mercado de compra de poder periodicamente liquidaria empresas comerciais porque a escassez e a fartura de dinheiro provariam ser tão desastrosas para os negócios como os alagamentos e as secas para as sociedades primitivas.
Sem dúvida, os mercados de trabalho, da terra e do dinheiro são essenciais para uma economia de mercado. Mas nenhuma sociedade pode aguentar os efeitos desse sistema de ficções brutas, nem mesmo pelo menor período, a menos que sua substância humana e natural, assim como sua organização de negócios, estejam protegidas contra os estragos desse moinho satânico.
Existem 47,1 milhões de estadunidenses que dependem de auxílio-alimentação para comer. As elites estão tramando acabar com esse auxílio, assim como com outros programas de “direitos” que evitam que os pobres se tornem miseráveis. 
O ímpeto de trilhões de dólares do Medicare, Medicaid e de outros programas sociais, dado o impasse político em Washington e o aumento do “abismo fiscal”, agora parece incerto.
Há 50 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, mas porque a linha da pobreza é tão baixa – US$ 22.350 para uma família de quatro pessoas – esse número nada significa. Acrescente-se a isso as dezenas de milhões de estadunidenses de uma categoria chamada “próxima à pobreza”, incluindo as famílias que tentam viver com menos de US$ 45 mil por ano e ter-se-ão ao menos 30% do país na pobreza. 
Assim que essas pessoas perceberem que não haverá recuperação econômica, que seu padrão de vida continuará a cair, que foram enganadas, que a esperança no futuro é uma ilusão, elas se tornarão tão furiosas como os manifestantes da Grécia e da Espanha ou os militantes de Gaza ou do Afeganistão. 
Os bancos e outras corporações financeiras entregaram trilhões em empréstimos sem juros do Federal Reserve, enquanto acumulavam US$ 5 trilhões, em grande parte pilhados do Tesouro dos EUA. Quanto mais essas disparidade e desigualdade mundiais forem perpetuadas, mais as massas se revoltarão e mais depressa replicaremos internamente o modelo israelense de controle doméstico – drones acima de nossas cabeças, todos os dissidentes criminalizados, equipes SWAT rompendo pelas portas, força mortal como modo aceitável de subjugação, alimentos usados como armas e vigilância constante.
Em Gaza e em outras partes doentes do globo vemos essa
 nova configuração de poder. 
O que está acontecendo em Gaza, assim como o que ocorre com pessoas negras em comunidades marginais nos EUA, são o modelo. As técnicas de controle, sejam elas aplicadas por israelenses, sejam usadas por unidades de polícia militarizada nas guerras contra drogas de nossas cidades, sejam empregadas por forças militares especiais ou por mercenários no Paquistão, no Afeganistão ou no Iraque, são testadas primeiro e aperfeiçoadas nos fragilizados e nos despossuídos. 
Nossa insensível indiferença ao apelo dos palestinos e das centenas de milhões de pobres empacotados em favelas urbanas na Ásia ou na África, assim como de nossa própria subclasse, significa que as injustiças cometidas contra eles serão cometidas contra nós. Ao falhar com eles, falhamos conosco. 
À medida que o império dos EUA implode, as mais brutais formas de violência empregadas fora do império começam a migrar de volta para o país. Ao mesmo tempo, os sistemas internos de governança democrática calcificaram-se. 
A autoridade centralizada está nas mãos de um setor executivo que serve, como escravo, aos interesses corporativos globais.
A imprensa e os poderes judiciário e legislativo tornaram-se desdentados e decorativos.
O espectro do terrorismo, como em Israel, é usado pelo Estado para desviar gigantescos gastos para a segurança do país, para a vigilância militar e interna.

A privacidade é abolida. A dissidência é traição. Os militares, com seu mantra de obediência cega e de força, caracterizam a ética sombria da cultura vasta. A beleza e a verdade são abolidas. A cultura é degradada em besteiras. A vida emocional e intelectual de cidadãs e cidadãos é devastada pelo espetáculo, pelo mau gosto e pela malícia, assim como por montões de analgésicos e narcóticos. A ambição cega, o desejo de poder e uma grotesca vaidade pessoal – exemplificadas por David Petraeus e sua ex-amante – são os motores do progresso.

O conceito de bem comum não faz mais parte do léxico do poder. Este, como a novelista J.M. Coetzee escreve, é a “flor suja da civilização”. É Roma sob Diocleciano. Somos nós. Os impérios, no final, decaem em regimes despóticos, assassinos e corruptos que enfim consomem a si mesmos. E nós, como Israel, agora tossimos sangue.
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Chris Hedges*, cuja coluna é publicada às segundas-feiras em Truthdig, passou quase duas décadas como correspondente internacional na América Central, no Oriente Médio, na África e nos Bálcãs. Escreveu reportagens em mais de 50 países e trabalhou para The Christian Science Monitor, National Public Radio, The Dallas Morning News e The New York Times, para o qual foi correspondente internacional por 15 anos.


Notas de rodapé
[1]  Dada a vida que levam, em consequência do bloqueio e dos ataques genocidas de Israel, os habitantes de Gaza preferem usar a expressão “campo de extermínio”.
[2]  No original, flout, que também significa caçoar, zombar – termos mais apropriados ao que Israel e EUA fazem com o direito internacional.
[3] Zonas-tampões são terras palestinas que Israel confisca para manter, entre a linha de fronteira e Gaza (ou as vilas e cidades da Cisjordânia), uma área vazia, de acesso proibido aos palestinos, cercada e vigiada por soldados armados.
[4] Ver Karl Polanyi (em inglês). Embora o trecho citado neste texto seja interessante, é preciso manter um olhar crítico em Polanyi. Ele falhou exatamente onde o outro Karl, o Marx, acertou. Como filósofo, Marx foi fundo na ontologia para entender a formação da riqueza e do capital, ao passo que Polanyi não fez senão um sobrevoo nessas mesmas questões.

Postado: vila vudu

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