O óbvio difícil:
Tornar transparente a ameaça à humanidade
Ignacio Ramonet, de Le Monde Diplomatique , chamou a atenção para uma evidência ao afirmar que nunca a humanidade esteve tão desinformada como hoje apesar do torrencial fluxo de informação disponível.
A contradição configura uma ameaça. O funcionamento perverso da comunicação social está na raiz de acontecimentos alarmantes.
O velho aforismo de Goebbels segundo o qual uma mentira, à força de repetida, se torna verdade (Salazar dizia "o que parece é") documenta bem o proveito que o sistema de poder norte-americano tem tirado da sua capacidade de impor à humanidade as suas verdades, desinformando-a e manipulando-a.
Uma das ameaças à própria sobrevivência do homem resulta precisamente da extrema dificuldade que as grandes maiorias sentem em compreender fenómenos político-sociais que condicionam dramaticamente o futuro próximo.
Não estamos perante uma situação sem precedentes, embora as consequências, essas sim, possam ser inéditas e trágicas.
O entendimento da História profunda, tal como a concebia Lucien Fèbvre, raramente é assimilado pelas gerações que foram protagonistas de acontecimentos que mudaram a vida nos quais elas emergiram simultaneamente como sujeito e objeto.
Isso ocorreu com a Grécia do século V antes da nossa era, com a Roma dos Antoninos, com a Revolução Inglesa de 1648, com a Grande Revolução Francesa, com a Revolução Russa de Outubro de 1917, e noutras situações de ruptura e inovação.
O mesmo fenómeno do atraso na compreensão do movimento e do significado da história está a repetir-se hoje com a humanidade mergulhada numa crise de civilização provocada pela globalização neoliberal e pela estratégia de dominação perpétua e universal do sistema de poder dos EUA.
O combate eficaz a ameaças devastadoras que impendem sobre a humanidade e a sua neutralização exigem a assimilação pela consciência dos povos de uma realidade: o perigo vem precisamente da engrenagem de poder que se apresenta como guardiã e defensora de valores eternos da condição humana.
Parece fácil desmontar a inversão da realidade, mas, na prática, a tarefa é dificílima.
A máquina da desinformação funciona a partir de um falso axioma maniqueista que divide o mundo em bons e maus.
Vale a pena recordar que Mani, na Pérsia Sassânida, foi há 17 séculos, de certa maneira, um revolucionário, na medida em que rompeu o imobilismo da religião oficial, apresentando como alternativa ao mazdeismo uma nova mundividência. Mas os modernos maniqueistas norte-americanos são ultra-reaccionários.
Os Estados Unidos — a sociedade, o modo de vida, as instituições, os governantes, as suas guerras distantes contra povos indefesos —- encarnariam o bem. Os seus adversários seriam símbolos do mal. Como nação que se auto designa como predestinada, os EUA estariam a assumir a defesa da civilização criada ao longo de milénios contra forças satânicas, mobilizadas para a destruir.
A mensagem é primária, mas o controlo quase absoluto do sistema mediático nesta era da informação instantânea e universal permite atingir em grande parte o objetivo visado.
O discurso maniqueísta e farisaico não convence a intelligentsia , que o repudia, nem milhões de trabalhadores triturados pelas políticas neoliberais, mas perturba as grandes maiorias, confunde-as e, embora não obtenha a sua adesão, neutraliza-as, mantendo-as passivas.
As forças progressistas, identificado o perigo, têm desenvolvido, sobretudo após Seattle, um esforço para lhe fazer frente que assume proporções mundiais. O I e o II Foro Social Mundial, em Porto Alegre, e os muitos Foros alternativos a conclaves do G-7, do FMI, do Banco Mundial, da OMC — ou seja de instrumentos de ação da Santa Aliança do grande capital — traduzem a consciência da necessidade de combater a engrenagem de poder montada pelos senhores do mundo e de estimular o renascimento do espirito de luta em segmentos cada vez mais amplos das massas que sofrem as consequências do neoliberalismo.
Forças representativas de quadrantes ideologicamente muito diferentes e de mundividências culturais também díspares coincidem na rejeição do neoliberalismo, na condenação da instrumentalização e domesticação da ONU e das agressões imperialistas dos EUA. Mas o debate travado e muitas das ações de protesto empreendidas permitiram também verificar que entre forças e personalidades unidas em torno de um diagnóstico comum a convergência acaba quando se procura responder à pergunta: o que fazer?
A unanimidade simbolizada no lema «outro mundo é possível» desfaz-se logo que se coloca uma questão fundamental: como avançar para esse mundo?
O desacordo principia ao ser abordada a temática da alternativa ao neoliberalismo. Condenar a globalização neoliberal e o imperialismo não implica obrigatoriamente a rejeição liminar do capitalismo. O último Foro Social Mundial, em Porto Alegre, deixou transparente, através de comunicações apresentadas, que muitas das destacadas personalidades ali reunidas (apareceram até aliados da direita como o ex-presidente de Portugal, Mário Soares, e ministros de governos da União Europeia) acreditam ainda na possibilidade de uma reforma que humanize o capitalismo, tornando-o aceitável.
Alguns, sem disso tomarem consciência, cumprem, afinal o papel que Lord Keynes, conscientemente, desempenhou com muito talento, após a I Guerra Mundial.
Admito que uma parcela desses intelectuais age de boa fé. As suas intenções reformadoras estão em muitos casos acima de suspeita. Mas falta-lhes a experiência vinda da militância em partidos, movimentos e sindicatos. E essa ensina que o capitalismo é, por essência, desumanizante e, como tal, insusceptível de uma reforma que o torne aceitável para as suas atuais vítimas.
É minha convicção pessoal que no grande e positivo debate gerado pela recusa da globalização neoliberal a prioridade absoluta dada à procura de uma alternativa subalterniza uma questão fundamental: o desmascaramento do inimigo. Sem lhe arrancarmos a máscara não podemos combatê-lo eficazmente.
O objetivo suscita consenso. Mas tendemos a esquecer que esse desmascaramento, em profundidade, está por fazer.
A exegese das estratégias a serem eventualmente adoptadas perde muito do seu interesse prático se não for acompanhada de um trabalho de caracterização da natureza e dos métodos do poder imperial que forjou a globalização neoliberal e lhe garante o funcionamento. Tudo o que havia nesse campo a dizer foi dito? Não. Mas é imprescindível repetir incansavelmente o que tem sido revelado. A assimilação da história contada é sempre muito lenta.
Não tenhamos ilusões. Milhares de milhões de pessoas, talvez a maioria da humanidade, capta uma imagem falsa dos EUA e sobretudo do seu relacionamento com os países do Terceiro Mundo, imagem muito mais próxima da difundida por Washington que da real.
Lenin afirmou que somente a partir do inicio de Maio de 17 o povo da Rússia principiou a compreender que o Governo Provisório da burguesia, cuja missão oficial consistia em aprofundar as conquistas da Revolução de Fevereiro, era na prática um governo de traidores, empenhado em destruí-las.
Noutro contexto histórico, prometendo erradicar da Terra o flagelo do terrorismo e lançar os alicerces da futura idade do bem estar e da paz entre os homens — os EUA estão, afinal, militarizando o planeta através de uma estratégia de terrorismo de Estado que hierarquiza os povos e os divide em bons e maus, fazendo do uso da violência o instrumento de transformação da historia e do alargamento do fosso entre ricos e pobres.
Ronald Reagan, no auge da Guerra Fria, criou a imagem do «Império do Mal», colando o rótulo à União Soviética. George W Bush, agitando o espantalho de terríveis ameaças à segurança dos EUA, retoma a fórmula e inventa os estados bandidos ( rogue states) agrupados no temível «Eixo do Mal».
Não sou moralista. Sempre me repugnou o maniqueísmo político. Mas apetece recorrer a uma paráfrase para iluminar a mentira. Neste inicio do século XXI quem se apresenta à humanidade com despudor amoral são os EUA. Funcionam como "o Polo do mal".
O rol de calamidades desencadeadas pelo sistema de poder dos EUA nos últimos anos não tem precedentes pela sua amplitude planetária
Desde o Reich hitleriano, governo algum concebeu como o dos EUA uma política de relações com o Terceiro Mundo tão marcada por um pensamento fascistizante.
O inventário dos crimes cometidos pelo Estado norte-americano desde o desaparecimento da URSS está feito. Em trabalhos de intelectuais progressistas norte-americanos, como Noam Chomsky, encontramos, alias, as mais completas descrições e analises das agressões, das ignomínias, dos golpes ideados e financiados pela CIA, das intervenções diretas e indiretas que em desafio frontal ao Direito Internacional e à Carta da ONU fizeram dos EUA um Estado terrorista que se coloca acima das leis.
Essa acumulação recorde de crimes contra a humanidade, os coletivos e públicos, e os encobertos (CIA, DEA, AID, etc) continua, entretanto, a ser conhecida e avaliada somente por uma pequena minoria de habitantes da Terra. O controlo da informação e a cumplicidade covarde dos Estados da União Europeia, do Japão, do Canadá e da Austrália (sócios na partilha das riquezas do mundo) e também da Rússia (terceiromundizada e ela própria ameaçada) encobre o rosto e muito da crescente agressividade do sistema de poder onde se localiza o autentico polo do mal.
É assim que desde a Guerra do Golfo, numa escalada assustadora, a política da irracionalidade, do anti-humanismo, da opressão dos povos e da sobrexploração dos trabalhadores, da destruição do ambiente e das culturas nos é diariamente apresentada como mensageira do bem, patamar superior da democracia, síntese das conquistas da civilização e baluarte da sua defesa.
A inversão do real, melhor concretizada do que na época de Hitler – porque as instituições que regem a sociedade norte-americana são ainda formalmente democráticas — configura uma tragédia -- é a palavra -- que tende a embrutecer os povos e eliminar as suas potencialidades criadoras e o seu espirito de resistência.
O assalto à razão assume facetas tão absurdas que um cidadão de escassa inteligência, que erige em religião a apologia da violência e da vindita, ocupa em Washington o vértice do sistema de poder que sonha com uma ditadura planetária e –repito-- ameaça a continuidade da vida na Terra.
Por si só aquilo que, sob o beneplácito imperial, está a acontecer na Palestina (um genocídio que ultrapassa em horror as profecias bíblicas veneradas pelos cruzados do novo holocausto) e a guerra que reduziu a escombros antiquíssimas cidades do Afeganistão (talvez hoje o museu arqueológico natural mais rico da humanidade) – a irracionalidade dessa estratégia de indisfarçável barbárie deveria funcionar como alerta dirigido à consciência dos povos.
Estamos, porem, muito longe de uma compreensão suficiente pelas grandes massas da gravidade da ameaça. Daí a necessidade urgente de ao esforço para fazer passar a uma fase superior as lutas contra a globalização neoliberal somarmos um esforço paralelo complementar e simultâneo, que ajude centenas de milhões de pessoas a perceberem que o sistema de poder imperial dos EUA é, como grande inimigo da humanidade, inimigo de cada cidadão da Terra desejoso de paz, de liberdade, de progresso, de felicidade.
Tão fácil e tão difícil !
Este artigo encontra-se em https://www.resistir.info/mur/tornar_transp.html
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